É um daqueles dias em que a Rio Branco se vê livre da pressa
de tantas gentes, do escândalo de tantos carros, está de folga, desocupada, há
espaço de sobra para o descanso dos miseráveis.
Entre a calçada e a porta da loja fechada, o corpo mirrado se
acomoda sobre o degrau de mármore, a loja é de moda, da moda e por falar em
moda, a tonalidade das roupas sujas da mulher deitada combina com a fuligem da
porta ondulada que lhe serve de encosto. De lado, virada para a rua, cabeça
sustentada pelo braço, a pose é de quem está na sala de estar assistindo no
sofá a um programa de TV entediante, tem idade para ser avó, mas
provavelmente os netos não a visitariam aqui neste lugar. Ela olha fixamente
para algum ponto indeterminado, não são olhos de reflexão, nem de contemplação,
nada os impressiona, de quando em quando são olhos que piscam.
A buzina aguda faz o anúncio, lá vem a novidade sobre
trilhos, um motociclista o antecipa fazendo-lhe escolta, o VLT não pode trilhar
desacompanhado, nossa civilidade é ainda uma bicicleta de rodinhas. A
estridência da motocicleta não a perturba, a agitação do grupo de turistas não
lhe atrai a atenção e tampouco o desfile do veículo leve sobre trilhos é páreo
para arrancar a apatia dos olhos da mulher deitada.
Um colega de agruras se aproxima,
numa das mãos carrega um saco de estopa e na outra traz escondida atrás das
costas uma surpresa. O homem faz festa e, quando bem próximo da mulher deitada,
revela o objeto escondido, ponto iluminado na escuridão. A mulher se anima,
ganha vida, apruma o corpo, o que recebe é acolhido como se fosse o próprio
Santo Graal. A garrafinha de água mineral está umedecida por fora, certamente
acabou de ser retirada de algum refrigerador de bar. Quem diria, a água, essa
substância tão comezinha, é ainda capaz de arrancar dos olhos um sorriso.