Faz frio, e o homem em andrajos arrasta o lençol pelo chão
como se quisesse varrer os males da cidade. Todas as articulações do corpo se
movem em dissonância, o que lhe empresta aparência de robô em curto circuito.
Vai para frente, volta para trás, é alguém sem rumo. Na calçada larga, as
pessoas desviam dele, evitando o perímetro que o cerca. O seu derredor é uma
ilha despovoada. Passos aprumados, ele segue em direção à entrada do shopping e
isso logo acende o sinal de alerta no semblante do segurança, sorte dele que o
homem do lençol em punho dá meia volta e desiste de entrar, lá dentro faz mais
frio.
É o mesmo homem agora deitado na beirada do meio-fio. De
volta à sua finalidade original, o lençol cobre o corpo magro e comprido, tão
comprido que os pés estão de fora, são pés encardidos que acumulam poeiras das
mais diversas proveniências, coletânea de fuligens, mostruário da sujeira disseminada
por todos os cantos. Há ali um gesto de generosidade, afinal o lugar que
escolheu para se deitar não atrapalha o vai e vem da multidão, e assim a ordem
das coisas vai seguindo se cada um se ativer à sua parte. Os braços se cruzam
por trás da cabeça e os olhos arregalados procuram o alto, o homem faz subir palavras
aos céus, talvez agradeça pela vida ou talvez tire satisfações, de qualquer
jeito é um momento íntimo em relação ao qual não prolongo a especulação.
Pela terceira vez me deparo com ele. A novidade é que o
lençol não é mais sua única carga. Ora, vejam só, não é que alguém de coração
quente lhe deu uma quentinha. Acomoda-se no chão, faz da calçada sua sala de
jantar com vista para um cruzamento movimentado. Faltam-lhe talheres, não se
pode ter tudo, principalmente quem não tem nada. Mas ele resolve o problema
comendo com a mão, come apressadamente, lambe os beiços, lambe o alumínio da
quentinha com a fome dos insaciáveis ou com a insaciedade dos famintos. As
pessoas agora desviam o olhar, por respeito, por pena, por náusea. Ao fim da
refeição, ele se deita novamente sob o lençol fino e rasgado que agora se
estica para cobrir os pés, deixando descoberta a área do peito. É um coração em
desabrigo.
Anoitece e eu observo um painel à minha frente,
são muitos desses espalhados pela cidade para difundirem informações e
propagandas. São iluminados e coloridos a ponto de capturarem, feito tarrafas, um
grande punhado de atenções. Notícia após notícia, uma delas parece se destacar
das demais: esta será a madrugada mais fria do ano.