Não faz muito tempo que neste lugar funcionava uma livraria
dedicada à venda de livros de arte. Sempre vazia, era de se adivinhar a
contagem regressiva para o seu ocaso. Não que agora o ambiente esteja livre
dessa coisa do prazo de validade, que estampa as centenas de produtos
distribuídos pelas prateleiras posicionadas de maneira a formar corredores por
onde trepidam as rodas dos carrinhos de compra.
O espaço parecia bem maior, mas isso é a ótica que se deixa
iludir pelos diferentes feitios de arranjo. Se ontem os livros respiravam
confortavelmente no alto de seus mostruários iluminados por luminárias
arrojadas, hoje as latas de óleo se espremem numa falta de fôlego torturante,
imploram para que as levem logo dali.
Num dos corredores estreitos estende-se a fila que desemboca
na seção dos caixas. É para o final dela que um homem e uma mulher se dirigem,
vão trocando risadas por estarem confusos a respeito da organização do lugar,
quase se passaram por furadores de fila.
– Sabe o que é? Sou do brejo, sou da roça e venho pouco aqui
na cidade – justifica-se o homem.
É um convite à pontaria de muitos olhos, todos ao redor
passam a observá-lo, provavelmente vasculham sua vestimenta à procura de alguma
mancha de terra ou algum resquício de hortaliça, o interesse dura pouco, a
atração se desmancha, ao que parece nada, a não ser sua própria declaração, o
distingue como matuto. Caixa livre, por gentileza o próximo.
– Ô moça, esse é o primeiro sorriso que recebo no dia – diz o
homem que se diz do brejo, esquecendo que há não mais que dois minutos era
destinatário de uma saraivada de sorrisos enquanto aguardava a fila avançar. Ou
então há aí uma gradação só compreensível intimamente, para ele deve haver
sorrisos e sorrisos.
A moça do caixa não altera o tom de seu comportamento que é
para ficar claro que o sorriso é profissional, é impessoal, é parte de alguma
recomendação gerencial, e se o homem que se diz da roça, já se retirando com a
sacola de plástico pendurada no gancho dos dedos, olhasse para trás, perceberia
que o mesmo sorriso é distribuído indistintamente a todo e qualquer cliente,
mas, vá lá, no fim das contas que mal existe imaginar-se especial?
Quase próximo da saída, o homem que se diz
indigente de afetos passa por onde antes eram expostos livros ligados a Pintura.
Por ali, em destaque, um Van Gogh carrancudo costumava fazer sentinela,
mantinha-se circunspecto a ilustrar a capa de sua biografia. É exatamente naquele
ponto que hoje se vê instalada a imensa geladeira abarrotada de iogurtes. Deixa
estar, tudo é alimento.