Antes árvore, agora sol na tua cara. É o que estava pichado
em vermelho no muro branco. Vasculhei o arredor e me alegrei por ter entendido
o sentido da frase, orgulho besta parecido ao de quem desvenda uma charada.
A julgar pelo calibre do tronco cortado quase ao rés do chão,
a árvore tinha porte suficiente para sombrear um terço da rua, incluindo o muro
pichado que agora, exposto, recebia a incidência do sol abrasador. No canteiro
onde estavam os despojos da árvore, pequenas flores coloridas haviam se espalhado
feito aqueles minúsculos insetos que orbitam a banana passada, e isso, associado
ao que estava escrito no muro, legítimo e retumbante epitáfio, dava ao cenário
contornos de funeral.
Por dias me auto pressionei com a pergunta intermitente: por
que não fotografei? Pois então retornei à rua onde enquadrei com a tela do
celular vários ângulos do que a partir de então estava devidamente registrado no
catálogo de fenômenos da dinamicidade urbana. E foi sorte.
Digo sorte porque poucos dias depois, como se por efeito de
um ato profanador de memórias, o muro foi pintado pela metade, restando do epitáfio
as palavras “sol na tua cara”, que, remanescentes e desconexas com o contexto
geral da cena, foram reduzidas a um grito incompleto sem força de eloquência. Quem
quer que tenha pintado o muro também quis deixar algum recado: seja sobre
estender um pouco mais o mísero pedaço da homenagem, seja simplesmente sobre
dar mostra da incompetência da zeladoria pública. Ocorre que, na semana
seguinte, o muro foi pintado por completo e as florezinhas que coloriam o sepulcro
arbóreo foram todas elas ceifadas.
Quis a coincidência, dessas que nos iludem ou, o que talvez
dê no mesmo, amenizam nossa desilusão, que neste domingo de Páscoa, 21 de abril
de 2019 (os céticos do futuro conferirão no calendário), eu estivesse na rua em
que tudo se passou. Não há nada mais que se refira ao memorial da árvore
abatida. Só que, sobrevindo ao epitáfio, às flores e ao registro da fotografia
de celular, há um ramo que eclodiu do meio do cotoco de tronco ressequido. É
ainda fino, frágil, verde, mas aponta na direção do céu.
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