tag:blogger.com,1999:blog-14056851535094156512024-03-12T23:37:03.482-03:00 :Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comBlogger37125tag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-71944653229349161712023-11-04T16:53:00.007-03:002023-11-04T16:59:05.922-03:00Desinteligências e um gol de honra <p> </p><p align="center" class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: center;"><br /></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">1.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Uma mulher passeia com dois
cachorrinhos. As cordas ligadas às coleiras são bem compridas, permitindo que
os animais farejem o chão com mais desenvoltura. É uma cena sem maior apelo,
tem tudo para ser apenas uma das tantas ocorrências corriqueiras do cotidiano,
daquelas que serão imediatamente pulverizadas da memória de quem dedicou a elas
um olhar de relance. Ocorre que um clima pesado a diferencia. Há alguns
elementos de tensão que a envolvem. A mulher olha para um ponto fixo e começa a
puxar as cordas para os cachorrinhos ficarem mais próximos dela. Vem vindo uma caminhonete
branca a uma velocidade considerável. É para ela que a mulher aponta seu olhar
de apreensão. Com uma das mãos, faz um sinal repetitivo. Pretende mostrar que
no chão há uma faixa de pedestre parcialmente apagada. A caminhonete avança sem
diminuir a velocidade. A mulher então puxa novamente as cordas para que os
cachorrinhos fiquem à sua frente, de um jeito que os deixa parecidos com o pano
vermelho de um toureiro. O touro, no caso, é a caminhonete branca que se
aproxima com fúria, com pressa, passando a centímetros da mulher e dos
cachorrinhos. Atônita, a mulher se vira para a traseira da caminhonete que
agora se distancia e mais uma vez faz o sinal apontando para a faixa
semiapagada. Mesmo já longe, dá pra ver que o motorista da caminhonete levanta o
braço para fora da janela e também faz um sinal. Com o dedo médio da mão.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">2.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">O pai pisa no degrau da escada
rolante. A filha adolescente vai atrás. Conforme os dois vão subindo, o pai começa
a esbravejar. O tom da bronca aumenta na proporção em que a escada os eleva. Os
gritos têm alguma coisa a ver com gastos no cartão, alguma despesa indesejada.
O fato é que em cada canto da loja de departamento, qualquer um é alcançado
pela onda sonora feroz. Mesmo que não queiram, os clientes são obrigados a
conhecer detalhes do que o pai vocifera contra a filha. E todos se entreolham,
concordando em silêncio que aquilo é um disparate. A filha, braços cruzados e
olhar caído, certamente deseja que a escada rolante, por demais vagarosa, a
leve para longe dali. <o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">3.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Na padaria, uma mulher caminha de um
lado para o outro portando um garfo descartável e uma pequena bandeja de isopor
sobre a qual há a terça parte de um pedaço de torta. É um mistério para mim o
que ela quer. Pelo que interpreto da cena, a cliente vai sendo empurrada de
funcionário em funcionário, sem que ninguém saiba resolver sua demanda. Em
determinado momento, ela perde a paciência e se dirige ao caixa com a torta
semi-consumida a tira colo. <o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">—Tem que ter paciência – ela
desabafa.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">— De Jó – complementa a caixa. <o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Ao atravessar a saída da padaria, a
cliente deixa um recado: <o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">— Eu só acho que se as pessoas não estão
satisfeitas no trabalho delas, elas têm que procurar outra coisa pra fazer. <o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">4.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Na internet só se fala numa coisa: a
guerra (re) começou. <o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">5.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Nem sinal do gengibre que não costuma
faltar neste supermercado. Recorro ao jovem agachado que remexe abacates numa
caixa. Pergunto se de fato o gengibre está em falta. Ele confirma e se
compadece da minha frustração. Agradeço e volto a fazer as compras. Depois, já
em outro ponto do supermercado, sou abordado por uma pessoa. É o jovem de cinco
minutos atrás. Ele me entrega um pedaço graúdo de gengibre e diz que o
encontrou depois de fazer uma varredura no estoque. Fiquei com cara de quem não
sabe como agradecer e talvez não tenha agradecido da melhor maneira. <o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Tudo isso se passou num único sábado,
7 de outubro de 2023.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O placar do dia
foi quatro a um. Goleada. Ao menos não foi de zero. <o:p></o:p></span></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><span style="font-size: 18.6667px;"><br /></span></span></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><br /></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj_FjK22ZgjlHTBFvCR9H6UYC6CUDv9Z6Nni3QGKL1JPN1CTPWYd0smxNbHxl6xH5jtTpv1QCdjiyVoCxknxNGnrcIbQBEQqqisRVwH5ZpfPi6rBezoDkRiCkx0NqtGElPzuZz95hwyZAwY3uXRPF4WBlKqB1gIlPoOgxc7xFP3N358Zm5AZEkE7uWZj1OD/s1716/capinha%20a%20boa%20li%C3%A7%C3%A3o%202.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1593" data-original-width="1716" height="186" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj_FjK22ZgjlHTBFvCR9H6UYC6CUDv9Z6Nni3QGKL1JPN1CTPWYd0smxNbHxl6xH5jtTpv1QCdjiyVoCxknxNGnrcIbQBEQqqisRVwH5ZpfPi6rBezoDkRiCkx0NqtGElPzuZz95hwyZAwY3uXRPF4WBlKqB1gIlPoOgxc7xFP3N358Zm5AZEkE7uWZj1OD/w200-h186/capinha%20a%20boa%20li%C3%A7%C3%A3o%202.jpg" width="200" /></a></div>Saiba detalhes sobre o mais recente livro do autor <a href="https://www.amazon.com.br/boa-li%C3%A7%C3%A3o-Fl%C3%A1vio-Sanso/dp/6588672233/ref=sr_1_1?crid=3748OR7VAHPYX&keywords=a+boa+li%C3%A7%C3%A3o&qid=1699127722&s=books&sprefix=%2Cstripbooks%2C220&sr=1-1" target="_blank"><i><b>aqui</b></i></a><br /><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><br /></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></p>Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-632957512549784492023-05-11T23:29:00.006-03:002023-05-13T21:44:07.965-03:00Não sei, logo existo<p> </p><p></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Sábado. Tomo a rua bem na hora da
troca de turno entre escuro e claridade. É quando acontece o encontro entre
quem madrugou para ir ao trabalho e a turma boêmia devolvida pela noite. Mas
hoje sou só eu. Esta cidade já foi mais pontual. <o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Caminho pela calçada que ladeia um
hospital. É um caminho elevado, a ponto de estar no mesmo nível do segundo andar
constituído por quartos de atendimento. Olho para a janela aberta de um deles. Lá
dentro, alguém está deitado na cama. Consigo distinguir o volume da barriga.
Por trás dela um rosto se revela devagar como se fosse o sol nascendo acima de
um monte. O homem se esforça para erguer o corpo, fixa o olhar em minha direção
e do nada faz um aceno. Sim, é pra mim, só pode ser pra mim. A minha dúvida é
sobre se ele me toma por outra pessoa. Ou por outro tipo de ser. Talvez me veja
como um anjo salvador a quem acena na esperança de ser socorrido. Pode ser que
me veja como a inimiga das gentes para quem acena tentando negociar. Não sei, e
o fato de não saber me faz pensar que tenho dúvidas em responder todas as
questões que me fazem e, pior, que faço a mim mesmo. <o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Viajo. Na traseira do caminhão, os
olhos de Jesus são exageradamente azuis. Eles olham para o alto, procuram o céu
acima da rodovia. Por que será que os olhos são tão azuis? Qual é o motivo do
contato com os céus? O semblante de preocupação tem a ver com o paciente que
acenou para mim?<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Por coincidência ou por algum sinal
enviado pelo sistema subliminar de comunicações supremas, não sei, volto a
encontrar Jesus, só que agora, desprovido de qualquer incumbência messiânica,
ele é o dono da padaria. Ao me servir uma caneca de café com leite pergunta o
que quero comer. Respondo que ainda não sei. Seu Jesus faz cara de impaciência
e indaga como alguém não sabe o que quer comer. Em seguida, argumenta que não
saber o que quer comer é um tipo de privilégio. Já eu acho que é um embaraço, é
confessar a ignorância inconcebível da vontade. Você tem fome de quê? Não sei.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">E é nessa de inspecionar janelas
abertas que avisto a cara de um cão de pelos brancos. As orelhas em pé, a boca
escancarada de onde pende uma língua inquieta, ele olha apreensivo para a
esquina. Toda vez que aparece um carro ou uma pessoa, sua vibração explode em
um entusiasmo de criança. A dúvida para ele é um elemento mágico. O momento pelo
qual desconhece o que está por surgir na esquina é a alegria que o captura em
um transe, o tipo de sensação de não se importar com nada mais em volta. O não
saber é uma satisfação. Ao contrário do meu caso. <o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Volto a caminhar pela calçada que ladeia
o hospital. A janela continua aberta, mas agora o quarto está desocupado. O que
pode ter acontecido eu não sei. <o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><br /></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><br /></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhqq8jmZGOUNI2DGOThR_lKZDz_qqYVDR958x_wjNvT2zrni5idlWi3fUh8daTz6Lhl5Dz4_wdBilhdI3--Jw2uSav5vBiS9BMhZN0OcHGN9hGKk4aS3j1gY_AlPdEtOcbFjTKa_OBsXFaq6LGkKL9BEcdLzYOAWrAj8OruNqAUxEDnh5e_ZBmb6Gb7kw/s2717/capinha%20a%20boa%20li%C3%A7%C3%A3o.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2717" data-original-width="1890" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhqq8jmZGOUNI2DGOThR_lKZDz_qqYVDR958x_wjNvT2zrni5idlWi3fUh8daTz6Lhl5Dz4_wdBilhdI3--Jw2uSav5vBiS9BMhZN0OcHGN9hGKk4aS3j1gY_AlPdEtOcbFjTKa_OBsXFaq6LGkKL9BEcdLzYOAWrAj8OruNqAUxEDnh5e_ZBmb6Gb7kw/w139-h200/capinha%20a%20boa%20li%C3%A7%C3%A3o.jpg" width="139" /></a></div><br /><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: center;"><b>O lançamento do autor está diponível <a href="https://www.travessa.com.br/a-boa-licao-1-ed-2022/artigo/cd6029af-936c-48b7-b27a-5742e897066b" target="_blank"><i>aqui</i></a></b></p><br /><p></p>Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-3661253207483697812023-02-12T18:16:00.006-03:002023-02-15T16:10:48.163-03:00Frederico<p> </p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;">Depois que tive a ideia de espetar bananas na parte de fora
da minha janela, passei a receber visitas das mais diversas. Primeiro vieram
sabiás. São desinibidos e glutões. Distribuem-se em muitas espécies. Só soube
dessa variedade toda ao reconhecer na internet cada um dos visitantes que
aparecem por aqui: sabiá-laranjeira, sabiá-preto, sabiá-poca, sabiá-barranco.
Alguns deles dão até uma palinha de seu gorjeio. Vejam só, tenho agora de sobra
o que faltava ao nosso valente Gonçalves Dias.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;">Com o tempo, chegou a turma dos saíras. O saíra-azul e o
saíra-verde sempre aparecem juntos. Já o saíra-amarelo vem sozinho mesmo. Conhecido
apreciador de frutas, o sanhaço azul aos poucos começou a marcar presença.
Bem-te-vis e cambacicas também dão o ar da graça, embora com menos frequência. Todos
são de uma beleza afável, mas em matéria de exuberância existe o campeão. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;">Sentado à mesa que fica de frente para a janela, levei um
susto quando olhei pra fora. Ele estava enganchado na grade bem ao alcance da
minha contemplação. Os olhos inteiramente negros equivaliam a duas pequenas
bolas de gude. Transmitiam mistério e um pouco de assombro. O bico pontiagudo
mostrava-se como ferramenta poderosa para a perfuração. As penas vermelhas da
cabeça pareciam estar cuidadosamente penteadas para trás. Aliás, o vermelho
dessas penas, que não era qualquer vermelho, mas sim um que gritava, que berrava,
combinado à plumagem do corpo amarela-esverdeada com manchas geométricas pretas
formavam um conjunto carnavalesco. Era um pássaro que veio desfilando pelos
ares com sua fantasia luxuosa e se você ainda não ligou nome ao bicho, basta
recorrer à mais famigerada gargalhada dos nossos desenhos animados. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;">De lá pra cá, o pica-pau carijó tem batido ponto na minha
janela. Ficamos conhecidos um do outro, o que fez eu dar a ele um nome como maneira ingênua de deixá-lo mais à vontade. “E
aí, Frederico, como vai?” “Olá, Frederico, pode chegar.” “Já tá de volta, hein
Frederico.” Por mais frequentes que sejam suas aparições e por mais que ele tolere
minha presença do outro lado do vidro da janela, a aproximação continua ainda
muito melindrosa. Ao chegar, estuda minuciosamente os arredores para enfim, depois
de um demorado tempo, começar a bicar a banana. Arredio e desconfiado, traz consigo
a perturbação de se saber notado por qualquer um e em qualquer canto. A beleza
tem seus riscos. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;">Essa pequena ponte com a natureza me fez pensar como se dá a percepção
imediata das coisas, baseada em conceitos e construções. Tenho tido a
curiosidade de pesquisar os hábitos dos pica-paus carijó. Assim, pelo que percebo
de suas atitudes e peculiaridades, é bem provável que Frederico seja uma fêmea.
<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;"><br /></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh21D--gaqMFbWF3DDoYD7L-cp6prIlTHEBhSXscE1H504K6S4ljC7nAUnlVmL5-PIkqnI7MKhtvjZXENAiQlRQdzjXTX9wVEkWyoFouANvSmmm3eQidJUP19UB1hXrvumeg5kdq-i_byScbZDBfC0q50k1MJD-v1PWLjeSKAsxZzpoyf8DZYTlGb9LbA/s1152/Frederico.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1152" data-original-width="1094" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh21D--gaqMFbWF3DDoYD7L-cp6prIlTHEBhSXscE1H504K6S4ljC7nAUnlVmL5-PIkqnI7MKhtvjZXENAiQlRQdzjXTX9wVEkWyoFouANvSmmm3eQidJUP19UB1hXrvumeg5kdq-i_byScbZDBfC0q50k1MJD-v1PWLjeSKAsxZzpoyf8DZYTlGb9LbA/w190-h200/Frederico.jpg" width="190" /></a></div><br /><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 107%;"><span><i>Conheça todos os livros de Flávio Sanso</i></span></span><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;"> <a href="http://www.flaviosanso.com/2023/01/livros-do-autor.html" target="_blank"><i><span style="color: #2b00fe;">aqui</span></i></a></span></p><p><br /></p>Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-57479515475481520412023-01-28T23:01:00.003-03:002023-01-28T23:01:14.609-03:00RIP<p> </p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Quase pisei nela. A barata estava deitada de barriga para cima.
Suas pernas espinhosas se debatiam em desespero. Com a lateral do meu tênis,
empurrei-a devagar até que ela se desvirasse. Desvirada, ela se aquietou não sem
antes movimentar pela última vez uma das pernas, saudação por eu ter dado a ela
uma morte digna. <o:p></o:p></span></p>Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-27465507359603772512023-01-08T00:00:00.002-03:002023-01-08T00:05:07.505-03:001º de janeiro<p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh30I-x8D3bjqNn7pjv7FKNIpq9Ccr9pFIZqbyL-ar5NzdfPRqE_joe8WdUG5Zljb2cav3JyFk9beEwjnMq8PCM0AjtZ9Rn0kXWrQNcn635qnFTbTQtxrmc2LXkVJvpYsCG4x-CFBP8tU4g9bSMv-J6StDw9JAgLS-BDqVTchRYUtBUxZQx_10ydsEhgA/s4096/cidade%201%C2%BA%20de%20janeiro.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="3072" data-original-width="4096" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh30I-x8D3bjqNn7pjv7FKNIpq9Ccr9pFIZqbyL-ar5NzdfPRqE_joe8WdUG5Zljb2cav3JyFk9beEwjnMq8PCM0AjtZ9Rn0kXWrQNcn635qnFTbTQtxrmc2LXkVJvpYsCG4x-CFBP8tU4g9bSMv-J6StDw9JAgLS-BDqVTchRYUtBUxZQx_10ydsEhgA/w400-h300/cidade%201%C2%BA%20de%20janeiro.jpg" width="400" /></a></div><br /><p></p><p><br /></p><p>Existe um dia de descanso para a cidade</p><p>Neste dia ela não tem que suportar as rodas dos veículos</p><p>Eles que lhe pisam tanto</p><p>São dispensadas de reverberar o grito das buzinas </p><p>Seus prédios ganham exuberância</p><p>Suas vielas, avenidas, ruas se exibem nuas </p><p>Os semáforos – sossegados, ociosos, prescindíveis – conversam entre si </p><p>Estacione onde quiser</p><p>Há vagas, todas </p><p>Há silêncio e beleza na cidade fantasma</p><p>Senta aqui no asfalto</p><p>Deita no cruzamento</p><p>Posso tirar uma foto sua </p><p>Dessas que são improváveis </p><p>É só hoje </p><p>Amanhã tudo volta</p><p>As buzinas, o barulho, a pressa, o grito dos desesperados</p><p>E as pessoas</p><p>Elas vão chegar com a ilusão de que tudo vai mudar</p><div><br /></div>Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-6144924029560143782023-01-07T10:49:00.006-03:002023-03-14T10:17:32.092-03:00Livros do autor <p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEipbn1XqMxR5nQnX_Fv87PWIoCwpWECWnshH8qGut1ISQfVrC0SAHDV8DUPimbOQVslioLLuoxSHsvWxitlxhCCa-VQx6XhFrDvoelCbofVdYM-r053jPD-LiJLkzKr2k5HLDE5WO1t-Fx1t9AKo79KcEgkOWWWQBkuLCTjd-eL5iEIEVkGkYJeF8-W6g/s2717/capinha%20a%20boa%20li%C3%A7%C3%A3o.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2717" data-original-width="1890" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEipbn1XqMxR5nQnX_Fv87PWIoCwpWECWnshH8qGut1ISQfVrC0SAHDV8DUPimbOQVslioLLuoxSHsvWxitlxhCCa-VQx6XhFrDvoelCbofVdYM-r053jPD-LiJLkzKr2k5HLDE5WO1t-Fx1t9AKo79KcEgkOWWWQBkuLCTjd-eL5iEIEVkGkYJeF8-W6g/w139-h200/capinha%20a%20boa%20li%C3%A7%C3%A3o.jpg" width="139" /></a></div><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="color: #2b00fe;"><b><i>(Lançamento)</i></b></span></p><p style="text-align: justify;">Zinga está no porão de um tumbeiro, privado de sua liberdade e partindo de seu continente para um mundo desconhecido do outro lado do Atlântico. Nesse novo mundo, onde tudo é estranho e hostil, entre tentativas de conquistar a liberdade e frustrações de toda a sorte, aprende técnicas de pintura com o mestre Jean-Baptiste Debret. O ofício que lhe trazia momentos de liberdade acaba por ampliar o controle sobre seu cárcere, mas talvez lhe entregue a chave para a liberdade.</p><p>Adquira o livro <b><u><i><span style="color: #2b00fe;"><a href="https://editoraquatrocantos.lojaintegrada.com.br/a-boa-licao" target="_blank">aqui</a></span></i></u></b></p><p><b><u><i><br /></i></u></b></p><p><b><u><i><br /></i></u></b></p><p><b><u><i><br /></i></u></b></p><p><b><u></u></b></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><b><u><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg6upKHQJz2-pWjnTZuwSwFzQmovOT4HM7w1nfdv5zKfvTQRNMqOxCmEzF_liJwCf7V-iO8UN-OEvmU848FSWhNBgPE3dt8MjNYMz8vNVEpDHCQTgwiHkJBLjlMkSl3Xkk_uIVRBR_GxDih12ixc6JnZuwgag8wFD329pkdzdI9ItpKNl4b5-H9G1cqDA/s960/Viva%20Ludovico%20-%20capa.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="684" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg6upKHQJz2-pWjnTZuwSwFzQmovOT4HM7w1nfdv5zKfvTQRNMqOxCmEzF_liJwCf7V-iO8UN-OEvmU848FSWhNBgPE3dt8MjNYMz8vNVEpDHCQTgwiHkJBLjlMkSl3Xkk_uIVRBR_GxDih12ixc6JnZuwgag8wFD329pkdzdI9ItpKNl4b5-H9G1cqDA/w143-h200/Viva%20Ludovico%20-%20capa.jpg" width="143" /></a></u></b></div><div style="text-align: justify;">Viva Ludovico conta a improvável história de um açougueiro, que mesmo com os nervos tão acostumados ao abate e à brutal carnificina, subitamente é tomado por sentimento sensível em relação à existência de um boi, e por ela passa a lutar visceralmente. </div><div><a href="https://editoraquatrocantos.lojaintegrada.com.br/a-boa-licao" target="_blank"><br /></a></div><div>Adquira o livro <i><u><span style="color: #2b00fe;"><b><a href="https://editoraquatrocantos.lojaintegrada.com.br/viva-ludovico" target="_blank">aqui</a></b></span></u></i></div><div><br /></div><div>ou adquira pela Amazon <b><i><u><span style="color: #2b00fe;"><a href="https://www.amazon.com.br/Viva-Ludovico-Fl%C3%A1vio-Sanso/dp/8565850390/ref=sr_1_1?qid=1673055354&refinements=p_27%3AFlavio+Sanso&s=books&sr=1-1&text=Flavio+Sanso" target="_blank">aqui</a></span></u></i></b></div><div style="font-weight: bold; text-decoration-line: underline;"><br /></div><i style="font-weight: bold; text-decoration-line: underline;"><br /></i><p></p><p><b><u><i><br /></i></u></b></p><p><b><u><i><br /></i></u></b></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjuXtg3mW-HLR-W3BWMXmr_7aKS8rTBosk6EpYHTkMjBobDJvOmpdGfF-l3h-Gdby9smWmSOOMQWR65IECzyGY6vT6RX4FAu64wbln8lyvgINSiWDQ977XhLHXpF1KFL_ymM6rrhaI0ItAf4xDZcfJU0oqi5JuwaGbMkpVtoujagodrhRp8vdsJlbUm4Q/s960/A%20vida%20%C3%A9%20um%20sorvete%20derretido_capa.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="640" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjuXtg3mW-HLR-W3BWMXmr_7aKS8rTBosk6EpYHTkMjBobDJvOmpdGfF-l3h-Gdby9smWmSOOMQWR65IECzyGY6vT6RX4FAu64wbln8lyvgINSiWDQ977XhLHXpF1KFL_ymM6rrhaI0ItAf4xDZcfJU0oqi5JuwaGbMkpVtoujagodrhRp8vdsJlbUm4Q/w133-h200/A%20vida%20%C3%A9%20um%20sorvete%20derretido_capa.jpg" width="133" /></a></div><div style="text-align: justify;">O livro "A vida é um sorvete derretido", composto por 56 crônicas de Flávio Sanso, é um pequeno deleite em meio ao cotidiano, um ponto de alívio sobre a contemplação de um punhado de possibilidades sobre os rumos urbanos, esse bailado aleatório. As histórias são atalhos no tempo, e nós somos puxados como em um “barbante imaginário”, podendo olhar sem demora, degustando “prazer e percalços, euforia e incômodo”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Adquira o livro <b><i><u><span style="color: #2b00fe;"><a href="https://www.editorajaguatirica.com.br/produtos/a-vida-e-um-sorvete-derretido/" target="_blank">aqui </a></span></u></i></b></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">ou adquira pela Amazon <b><i><u><span style="color: #2b00fe;"><a href="https://www.amazon.com.br/Vida-%C3%A9-Sorvete-Derretido/dp/8556622402/ref=sr_1_1?crid=17WRFMU6208TA&keywords=a+vida+%C3%A9+um+sorvete+derretido&qid=1673098803&s=books&sprefix=%2Cstripbooks%2C201&sr=1-1" target="_blank">aqui</a></span></u></i></b></div><div style="text-align: justify;"><b><i><u><br /></u></i></b></div><div style="text-align: justify;"><b><i><u><br /></u></i></b></div><div style="text-align: justify;"><b><i><u><br /></u></i></b></div><div style="text-align: justify;"><b><i><u><br /></u></i></b></div><div style="text-align: justify;"><b><i><u><br /></u></i></b></div><div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; font-style: italic; font-weight: bold; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhGRQgaJRM0QkFhoNq2gMsZ-Qjvqe8s5eXYrX9TwzDEnXj6qrQ3CClLIFum6tR5T0dMTpUOK0W-Xbj7lG9fuMbCWNZ8NBYpwQjhE0qecVtjZaAOUAXHNvq32iUh06l6M3gEKp0gGKRJDLEReYxTgMBzoZWEcjKb_3PjDWaEKRB1X-kHHk2pVSkmzUBDYg/s2552/a_base_capa.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2552" data-original-width="1640" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhGRQgaJRM0QkFhoNq2gMsZ-Qjvqe8s5eXYrX9TwzDEnXj6qrQ3CClLIFum6tR5T0dMTpUOK0W-Xbj7lG9fuMbCWNZ8NBYpwQjhE0qecVtjZaAOUAXHNvq32iUh06l6M3gEKp0gGKRJDLEReYxTgMBzoZWEcjKb_3PjDWaEKRB1X-kHHk2pVSkmzUBDYg/w129-h200/a_base_capa.jpg" width="129" /></a></div><div><br /></div><div>Livro esgotado</div><div><br /></div><div>Aguardando nova edição</div><div><br /></div><div>Pode ser adquirido pela estante virtual<span style="color: #2b00fe;"> <b><i><u><a href="https://www.estantevirtual.com.br/busca?q=a%20base%20do%20iceberg" target="_blank">aqui</a></u></i></b></span></div><div style="font-style: italic; font-weight: bold;"><br /></div><u style="font-style: italic; font-weight: bold;"><br /></u></div><div><br /></div><div><br /></div>Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.com59C4WPPM+QG-21.0630415 -37.2661562-85.458610121641684 -177.8911562 43.332527121641689 103.3588438tag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-34346173927129272492023-01-01T23:00:00.004-03:002023-01-07T15:52:24.995-03:00Padaria & Padaria<p><span style="font-size: 14pt; text-align: justify;"><br /></span></p><p><span style="font-size: 14pt; text-align: justify;">Passando pela calçada, olhei de relance para dentro do
estabelecimento. Azulejos verdes-claros subiam até metade da parede. Havia um
balcão de doces, uma mesa com xícaras e garrafa térmica. Em milésimos de
segundo de trabalho conjunto, o cristalino, a retina e o cérebro formaram a
imagem que me pareceu a mistura de Loja Granado com armazém de secos e molhados.
Entrei.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;">A única pessoa lá dentro era um homem velho de cabelos
inteiramente brancos e penteados à perfeição para o lado. Usava máscara. Achei
estranho que estivesse sentado em um banquinho de madeira no centro da loja e
não posicionado atrás do balcão. Assim que me viu entrar, baixou as
sobrancelhas numa clara expressão de desgosto. Pedi um café. O velho aproximou
do ouvido uma das mãos em forma de concha. Falei mais alto e ele então retirou
da orelha uma das alças da máscara como se isso pudesse facilitar a compreensão
do que eu falava. Nossa falta de entendimento já estava decretada. Eu podia ter
desistido, algumas causas são compreensivelmente renunciáveis, mas eu insisti.
Em determinado momento, o velho balançou o braço e a mão em sinal negativo, o
que funcionou como uma expulsão. Saí incrédulo e com o tipo de ressentimento
que só o consumidor enxovalhado é capaz de sentir.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;">Poucos dias de diferença, entrei numa padaria em busca do que
fizesse as vezes da minha janta. Distraído com a análise das opções, levei um
susto quando um dos funcionários me abordou aos gritos: “Tenho uma surpresa pra
você.” Percebendo minha confusão, ele passou a falar ainda mais alto: “Você não
vai resistir. Saiu agora do forno uma pizza de queijo e alho”. O funcionário se
chamava Natan, conforme informado por ele mesmo. Enquanto falava, praticamente
me levou pelo braço até uma mesa onde estava exposto o pedaço da pizza. Sem alterar
a estridência com a qual se expressava, convocou os fregueses que estavam
sentados às mesas a me convencer sobre a excelência degustativa daquela
pizza. Todos me olharam simultaneamente, acenando em sinal positivo com a
cabeça. Por algum momento me senti o centro das atenções de algum musical
cômico. Poderia ser que a qualquer momento todos se levantassem e começassem a
fazer alguma coreografia, cantando odes à fatia fumegante de pizza.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;">Não nego que o rapaz era bom no que fazia. O problema é que
eu só queria preservar minha condição de cliente despercebido. Fiel ao
cumprimento de um roteiro alucinado, ele prosseguiu com sua tática de marketing.
Queria que cada um dos funcionários da padaria viesse até mim para reforçar sua
propaganda. Enfim, abreviei o curso das coisas e aceitei comprar o pedaço de
pizza. Natan, orgulhoso de seu sucesso, sacou do bolso o celular. Foi aí que me
apressei em pegar o caminho do caixa e sair da padaria. Era bem provável que ele
quisesse divulgar a venda pelo instagram ou, pior, gravar alguma dancinha da
pizza no Tik Tok. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;">Com o pedaço de pizza a tira colo e no caminho de casa, tive vontade
de voltar ao estabelecimento dos azulejos verdes-claros. Desta vez, pediria um
doce de abóbora. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 18.6667px;"><br /></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 18.6667px;">Conheça o novo livro do autor: </span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><a href="https://editoraquatrocantos.lojaintegrada.com.br/a-boa-licao" target="_blank"><i><span style="font-size: medium;">A boa lição</span></i></a></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> <span style="font-size: 14pt;"> </span><span style="font-size: 14pt;"> </span><span style="font-size: 14pt;"> </span></p>Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-47839445866038960182022-07-30T00:19:00.008-03:002023-10-28T15:19:29.215-03:00Passeio, passagem<p> </p><p></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Da minha janela estava acostumado a
ver o passeio que acontecia duas vezes por dia. No início da manhã e no fim da
tarde, caminhavam devagar, sempre mantendo certa distância entre um e outro. Sempre a
mesma distância. Parecia medida à régua.<o:p></o:p></span></p><p></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">À frente ia o dono. Atrás, carregando
sobre as quatro patas o peso de uma longa vida canina, o cachorro de pelo cor
de fogo exibia um desfile desengonçado. Um dos primeiros choques de realidade
que tive na vida foi descobrir que o andar com oscilação das ancas é
característica comum em cães em estado terminal. Os cachorros que já tive não
viveram até a fase senil, no entanto me lembro bem que o Joli, um vira-lata do
vizinho, em determinado estágio de sua velhice só conseguia se locomover
arrastando as patas traseiras. Essas memórias eram despertadas assim que, há
até bem pouco tempo, eu parava o que estava fazendo para observar a dupla
passar.<o:p></o:p></span></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><br /></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiaVIkLcOrcjrAD-K3FDB7QRIyS_IzbyoMmkOPddUTGL0HJ6VkLaMcQmlws46W0yvmJsTItunguHwdtP5Y2PmWMYZH-3CtSNclPYrD8DD8vTAhdClyxMyPtKpQhU_epBkuxS_1FK04f4wvjM-Z_4RD9gMjfEskIOeXDQ2nTMmek_RJsBjkJpXnU-EMdOQ/s4078/Polish_20220728_104718693.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1502" data-original-width="4078" height="118" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiaVIkLcOrcjrAD-K3FDB7QRIyS_IzbyoMmkOPddUTGL0HJ6VkLaMcQmlws46W0yvmJsTItunguHwdtP5Y2PmWMYZH-3CtSNclPYrD8DD8vTAhdClyxMyPtKpQhU_epBkuxS_1FK04f4wvjM-Z_4RD9gMjfEskIOeXDQ2nTMmek_RJsBjkJpXnU-EMdOQ/s320/Polish_20220728_104718693.png" width="320" /></a></div><p></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"></p><br /><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt;">Um bisbilhoteiro das coisas do
cotidiano vira e mexe se vê transtornado ao se dar pela falta do que lhe
ocupava habitualmente momentos de observação. Por dias estranhei o fim dos
passeios. A sorte é que os dois são daqui da vizinhança e por isso não demorei
a me atualizar sobre as condições do cachorro ao vê-los interagindo entre eles
no pequeno gramado que fica na parte da frente do prédio onde moram. A
debilidade do cão cor de fogo tem feito com que seu dono precise levantá-lo
pelo quadril para movimentá-lo. Certo dia o vi sendo carregado no colo para
dentro da portaria.</span></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 18.6667px;"><br /></span><span style="font-size: 14pt;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-size: 14pt;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjoZj7uHZrM-1M5-pwV82waTe9b1qu_8YaECFRaSUk_lRLydhoyb8wzYj4s8sPpWJnhvmQur803zbuyvOEgyVU_JWJZ6CPz-de9Bgu7yk69rPCVEBjq_i0YKrmMLiGbmAeCFrSopWDbHOsZUgP1cWzOe61qClmgA5b8iM1xF0rs9CMfTYnwtpljIyC4Rg/s3976/Polish_20220728_132710446.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1610" data-original-width="3976" height="130" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjoZj7uHZrM-1M5-pwV82waTe9b1qu_8YaECFRaSUk_lRLydhoyb8wzYj4s8sPpWJnhvmQur803zbuyvOEgyVU_JWJZ6CPz-de9Bgu7yk69rPCVEBjq_i0YKrmMLiGbmAeCFrSopWDbHOsZUgP1cWzOe61qClmgA5b8iM1xF0rs9CMfTYnwtpljIyC4Rg/s320/Polish_20220728_132710446.png" width="320" /></a></span></div><p></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><br /></p><p></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt;">Hoje em dia, toda vez que saio de
casa, altero meu percurso usual de maneira a passar em frente ao prédio do
cachorro de pelo cor de fogo. Ao me deparar com sua coloração em contraste com
o verde da grama, analiso se as pernas traseiras ainda conseguem ter alguma
mínima firmeza no chão. Chama a atenção o quanto elas tremem, fraqueza de
decrepitude.</span></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 18.6667px;"><br /></span><span style="font-size: 14pt;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-size: 14pt;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgD70isPFP1TSmUF7riyzpOnoPY-CKNt4h_Tg9EpDGhi5oMaRyIpNhJq_elY96xGKzpGBUHwYjcHKSyetYbPFBPt5labswrO5uJbl-MIGGnQuviAR29dEfBE_7Qhuzmg_Z1rNuOcwjqqimKVO2i5bu8AtyUpOJbGb_0btCCu8lwEUZ781YAz6NqwmtY7g/s3108/Polish_20220728_104457105.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1550" data-original-width="3108" height="160" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgD70isPFP1TSmUF7riyzpOnoPY-CKNt4h_Tg9EpDGhi5oMaRyIpNhJq_elY96xGKzpGBUHwYjcHKSyetYbPFBPt5labswrO5uJbl-MIGGnQuviAR29dEfBE_7Qhuzmg_Z1rNuOcwjqqimKVO2i5bu8AtyUpOJbGb_0btCCu8lwEUZ781YAz6NqwmtY7g/s320/Polish_20220728_104457105.png" width="320" /></a></span></div><p></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><br /></p><p></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt;">Nessas ocasiões, fico esperando que
me olhe de volta, olhos negros e profundos, língua arfante. Quando ele me
encara, simulo perguntas, quero saber dele se tem noção de sua finitude, se
está preparado, se sente medo. Sua reação é sempre a mesma: desvia o olhar e
vai cheirar a flor mais próxima que encontra.</span></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt;"><br /></span></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt;"><span style="font-size: 18.6667px;">Livros do autor: </span><a href="https://www.amazon.com.br/Viva-Ludovico-Fl%C3%A1vio-Sanso/dp/8565850390/ref=sr_1_1?crid=W5IG64ZLUFDK&keywords=viva+ludovico&qid=1640981345&sprefix=viva+ludovico%2Caps%2C258&sr=8-1" style="font-size: 18.6667px;" target="_blank"><i>Viva Ludovico</i></a><span style="font-size: 18.6667px;"> e </span><a href="https://www.travessa.com.br/a-vida-e-um-sorvete-derretido-1-ed-2019/artigo/7da427a5-e365-46ac-8b1a-1b4df2d49552" style="font-size: 18.6667px;" target="_blank"><i>A vida é um sorvete derretido</i></a></span></p><p align="justify" style="margin-bottom: 0.35cm; margin-top: 0.49cm;">
</p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><br /></p>Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-61146340999243593802022-02-03T22:48:00.004-03:002023-01-07T15:09:22.050-03:00Abordagem<p> </p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">— O que é que tá escondendo aí?<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Corri para a janela e a primeira
coisa que vi foi um rapaz com os braços para o alto depois de ter saído de trás
da árvore. Enquanto descia um pequeno barranco, obedeceu às ordens para abrir
bem a boca e suspender a camiseta, deixando a cintura à vista. A voz que me havia
atiçado a curiosidade voltou a trovejar:<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">— Tem droga dentro dessa bolsa?<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Quepe, óculos escuros, a farda
vestindo um corpo avantajado. O dono da voz, policial que poderia se passar
perfeitamente por personagem caricato de um esquete do Porta dos fundos, estava
parado ao lado da porta do carona recém-aberta. O azul claro das viaturas da
polícia militar fluminense não tem o tom do azul da Guanabara nem do azul do
céu do Corcovado. Suas luzes agitadas eram dispensáveis sob o sol do meio-dia.
De costas para onde eu avistava a cena, havia outro policial parado ao lado da
porta do motorista.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Negro, magro, camiseta branca em que
se lia Nike air, bermuda, chinelos de dedo, o rapaz falava baixo, mas ao mesmo
tempo se empenhava em afirmar a inocência. Dizia ser andarilho e que na bolsa
largada no chão só havia roupas. Pró-ativo, levou-a até o policial que estava
parado ao lado da porta do motorista, não se descuidando dos movimentos
executados com extrema precaução.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">O policial colocou a bolsa em cima do
capô da viatura, abriu-a e começou a retirar dela roupa por roupa. Estavam
todas bem dobradas, não resistindo, porém, à bruta inspeção. Logo já eram um
punhado de tecidos amarfanhados. De repente, um objeto se destacou entre a
pequena bagagem.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Após ajeitar o fuzil no ombro, o
policial da porta do motorista entregou seu achado ao colega. Por trás dos
óculos escuros, os olhos fixaram-se na carteira de trabalho. A mão estabanada
folheou página por página, tendo se detido em uma delas. Em seguida, o policial
da porta do carona aproximou-se do rapaz e lhe mostrou a carteira de trabalho
aberta.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">— Tu é esse aqui?<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">— Sou eu. <o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">— Mas esse aqui tá gordo e tu tá na
capa do Batman — concluiu o policial sem esperar justificativa — Usa crack?<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">— Não, não — duplicou os nãos o rapaz
na tentativa de ser convincente.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">— Tem passagem?<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Como se quisesse espantar de si uma
maldição, o rapaz balançou a cabeça negativamente. <o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">E enfim não havia mais razão para o
procedimento continuar. Um alívio para o rapaz, para mim e, quem sabe, também
para os próprios policiais, que, ao saírem com a viatura, deixaram uma advertência
enigmática:<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>— Vai pra casa. Não fica na rua, não.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">O rapaz foi acometido pela sensação
de alheamento que sucede um episódio de trauma. Sentou-se em uma mureta baixa e
com a expressão perdida se pôs a arrumar as roupas dentro da bolsa. Por várias
vezes precisou ajeitar o volume dentro dela, de maneira a fazer correr o zíper.
Depois, improvisou as alças da bolsa nos ombros, transformando-a em uma
mochila. Ele então se levantou, olhando para os lados. Já desperto da apatia e
com as mãos desocupadas, escalou o pequeno barranco, foi para trás da árvore e
pegou do chão uma áurea, bojuda e portentosa jaca.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Carregava a jaca como se tivesse nos
braços um bebê. Tinha pressa. Escolheu um banco da Praça Noel Rosa e se sentou.
Usou as unhas para tentar romper a casca da fruta. Contudo, interrompeu o que
fazia. Voltou a olhar para os lados. Parecia avaliar se sua atitude era
suspeita ou não.<o:p></o:p></span></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><br /></span></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><span style="font-size: 18.6667px;">Livros do autor: </span><a href="https://www.amazon.com.br/Viva-Ludovico-Fl%C3%A1vio-Sanso/dp/8565850390/ref=sr_1_1?crid=W5IG64ZLUFDK&keywords=viva+ludovico&qid=1640981345&sprefix=viva+ludovico%2Caps%2C258&sr=8-1" style="font-size: 18.6667px;" target="_blank"><i>Viva Ludovico</i></a><span style="font-size: 18.6667px;"> e </span><a href="https://www.travessa.com.br/a-vida-e-um-sorvete-derretido-1-ed-2019/artigo/7da427a5-e365-46ac-8b1a-1b4df2d49552" style="font-size: 18.6667px;" target="_blank"><i>A vida é um sorvete derretido</i></a></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><br /></p>Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-54400388744770606042021-12-31T17:11:00.005-03:002023-01-07T15:09:40.544-03:00A etiqueta do cão cor de barro <p> <span style="font-size: 14pt; text-align: justify;"> </span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Na lista repleta de opções rasuradas,
escolhi um x-burguer e pedi que ele viesse sem maionese e presunto. O garçom
titubeou, transparecendo certa recriminação por eu ter simplesmente desmontado
a combinação de ingredientes que alguém um dia elaborara com o intuito de
oferecer uma caprichada experiência de sabor e saciedade. A tempo de revisar
mentalmente o postulado de que os clientes – incluindo os que preferem levar
desvantagem – têm razão, o garçom recobrou os modos diligentes e saiu apressado
enquanto abanava o rosto com o cardápio, papel grandão, plastificado e com mais
emendas que a Constituição da nossa República.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Depois da primeira abocanhada, virei-me
e vi um cão que me observava com as orelhas em riste. Duas coisinhas sobre ele:
seu pelo era amarronzado, um marrom que só consigo comparar ao barro feito de
lama de terra clara. E o mais importante é que mantinha de mim uma distância
respeitosa. Ele sabia que se ultrapasse determinado perímetro poderia se passar
por inconveniente. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Segundo o profeta (e as camisetas de
souvenir), gentileza gera gentileza. E eu ouso acrescentar que compostura gera
recompensa. Arranquei um pedaço do x-burger e o deixei no chão, próximo ao pé
da mesinha instalada no calçadão. O cão avaliou minha atitude e se aproximou
devagar, vencendo a desconfiança natural que se deve ter com um espécime
humano. Depois de levar o pedaço para o exato lugar onde estava, saboreou com
gosto a generosa porção de queijo derretido, o pão de hamburguer, a carne, os
cubinhos de tomate. Tínhamos então estabelecido um trato silencioso. Repeti o
gesto por umas três vezes e ele também fez tudo igual, recolheu o pedaço, levou
para o lugar de costume, mastigou suave. Não é exagero dizer que dividimos meio
a meio a refeição.<o:p></o:p></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Há quem teorize que os cães são
bajuladores sagazes. Fazem de um tudo para agradar as pessoas que os alimentam,
questão bem calculada de sobrevivência. Não sei, talvez sim, talvez não. Na
prática, o fato é que quando me restava o último pedaço do x-burguer, pensei em
deixá-lo para o cão, mas já não mais o vi no lugar em que ele, em conformidade
de como se desenvolveu nosso acordo implícito, havia pacientemente aguardado que
seus outros quinhões fossem depositados sobre o chão. Pouco depois, enquanto
caminhava pela rua, voltei a encontrá-lo. Ele dormia, mas acordou
repentinamente. Fizemos contato visual e ele me ignorou. Sua memória canina nem
sequer fez questão de preservar a minha imagem por alguns minutos. Até nisso
aquele cão se mostrou elegante, evitando que crescesse em mim a vaidade de
pensar que ele me devia alguma coisa. <o:p></o:p></span></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><br /></span></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Livros do autor: <a href="https://www.amazon.com.br/Viva-Ludovico-Fl%C3%A1vio-Sanso/dp/8565850390/ref=sr_1_1?crid=W5IG64ZLUFDK&keywords=viva+ludovico&qid=1640981345&sprefix=viva+ludovico%2Caps%2C258&sr=8-1" target="_blank"><i>Viva Ludovico</i></a> e <a href="https://www.travessa.com.br/a-vida-e-um-sorvete-derretido-1-ed-2019/artigo/7da427a5-e365-46ac-8b1a-1b4df2d49552" target="_blank"><i>A vida é um sorvete derretido</i></a></span></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span><span style="font-size: 14pt;"> </span><span style="font-size: 14pt;"> </span><span style="font-size: 14pt;"> </span><span style="font-size: 14pt;"> </span><span style="font-size: 14pt;"> </span></p>Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-31171529423562463852021-10-08T22:56:00.014-03:002023-01-07T15:09:54.154-03:00Janelas<p style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt;">Sempre que limpo a casa, estendo os
tapetes na janela dos fundos. É onde o sol se apresenta mais generoso (ou mais
inclemente, a depender da época do ano). Em várias dessas ocasiões, costumava
dar de cara com a moradora do prédio que fica atrás do meu. Quando me via da
sua janela, ela invariavelmente desviava o olhar, fingindo que alguma coisa ao
redor lhe havia despertado a atenção. Com o tempo, desenvolvi a mesma técnica.
Era como se ela não me visse estendendo o tapete e era como se eu não a visse
contemplando a agitação da paisagem.</span></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><o:p></o:p></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Não quer dizer que eu tenha deixado
de perceber algumas coisas. Às vezes, ela murmurava. A impressão era a de que
conversava baixinho consigo mesma. Depois, concluí que na verdade rezava, e
isso pode ou não ter a ver com um adesivo verde colado no canto da janela, nele
havendo a seguinte recomendação: “O acaso não existe. Leia Kardec.” Ela usava
como indumentária permanente uma bandana colorida que enfeitava os cabelos
formados por cachos modelados com perfeição. Para mim, aquela bandana de cores
vivas era uma espécie de símbolo, uma marca registrada. Certa vez vi um rapaz
que, após sair do prédio, acenava para ela. Lá da janela, a resposta foi
econômica, uma indisposição para a despedida. </span><o:p></o:p></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Por esses dias, no grupo do prédio
onde moro, noticiaram que alguém do prédio de trás havia falecido. De início,
não identifiquei de quem se tratava e a partir de então passei a fazer
suposições. Pensei na senhorinha que de vez em quando passeia com a cachorrinha
no colo, sem nunca permitir que o bicho estique as perninhas. Pensei na mulher
que, da janela do seu apartamento no terceiro andar, costuma se mostrar muito
preocupada toda vez que o jardineiro se aproxima das suas plantas, advertindo
lá de cima para que ele não as arranque do gramado. Em seguida, as suspeitas se
reduziram a uma pessoa, por causa de outra mensagem postada no grupo: “Que Deus
possa confortar seu filho.”</span><o:p></o:p></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Já era noite quando fui até a janela
dos fundos. À frente, avistei o quarto iluminado. A janela e as cortinas
escancaradas deixavam à mostra o filho, o mesmo rapaz do aceno. Ele e algumas
pessoas esvaziavam o armário e faziam a divisão das roupas. Em pouco tempo, a
luz estaria apagada, a cortina esticada e a janela fechada. E permaneceria
fechada, ainda que lá fora a paisagem se agitasse. Por força de uma epifania me
dei conta de que os cabelos formados por cachos modelados com perfeição eram na
realidade uma peruca. Tenho vontade de saber qual terá sido a destinação dada à
bandana de cores vivas. </span><o:p></o:p></p>
<span face=""Calibri",sans-serif" style="line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><div style="font-size: 14pt; text-align: justify;"><span style="font-size: medium; text-align: left;"><b><span style="font-family: inherit;"><br /></span></b></span></div><div style="font-size: 14pt; text-align: justify;"><span style="font-size: medium; text-align: left;"><span style="font-family: inherit;">Livros do autor: <a href="https://www.martinsfontespaulista.com.br/viva-ludivico-925640/p" target="_blank"><i><span style="color: #2b00fe;">Viva Ludovico</span></i></a> e <a href="https://www.editorajaguatirica.com.br/produtos/a-vida-e-um-sorvete-derretido/" target="_blank"><i><span style="color: #2b00fe;">A vida é um sorvete derretido</span></i></a></span></span></div><br /></span>Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-16595854392216342112021-08-31T22:30:00.008-03:002023-01-07T15:10:13.506-03:00Ainda bem que foi sonho<p> </p><p align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0.35cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">Peças
de dominó de pé e na horizontal, uma atrás da outra. Na falta de
comparação melhor, vai essa mesmo. É uma imagem fuleira para
ilustrar o formato e a disposição de dez prédios que entre </span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">si</span></span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">
formam ruas onde, aos sábados e domingos, uma combinação de sons
anuncia a passagem do sorveteiro. Um assobio com notas desengonçadas,
o barulho da buzina acoplada ao carrinho e o que parece ser um grito
de guerra em língua estrangeira, tudo misturado, são a sua marca
registrada.</span></span></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">É estranho
que eu, marmanjo, seja provavelmente o único por aqui a dominar informações
sobre o itinerário do sorveteiro. Nunca vi criança alguma cercá-lo,
persegui-lo, chamá-lo, nenhuma delas puxando a mãe ou o pai pela mão para ir ao
encontro dele, nenhum flagrante de pirraça feita em razão do picolé negado, vai
ver eu e o próprio sorveteiro somos tipos antiquados que já não dão conta das
atualizações frenéticas destes tempos que correm. Correm tanto que já começam a
tropeçar nas próprias pernas.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Tarde de domingo.
Ouço ao longe o sinal de que ele se aproxima. Resolvo então tomar as ruas que
cercam o bloco de prédios. Estou na esquina
entre uma delas e a perpendicular. Lá na outra extremidade vejo passar o
sorveteiro. Conheço outro dos seus métodos de trabalho: ele percorre as ruas em
zigue-zague. É por isso que me adianto pela perpendicular, caminho
paralelamente à lateral de um dos prédios e viro à direita. A parafernália
sonora que o antecede vai se avolumando. Avanço pela rua, no final da qual, se
estou certo, ele surgirá daqui a pouco. É o que acontece. A máscara vermelha
amarrotada no pescoço dá a ele aspecto de elegância involuntária. Pelos meus
cálculos vamos nos encontrar bem no meio da rua.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">– Tem de
leite condensado?<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Os olhos
dele se acendem. Provavelmente sou o primeiro freguês depois de muito tempo. A
satisfação com que responde que, sim, ele traz em seu carrinho picolés de leite
condensado é a expressão do reencontro com sua autoestima. Reconhecendo-se
necessário, sente-se à vontade para uma confidência.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">– Sabe que
tive um sonho estranho essa noite? – comenta ele, interrompendo o ato de
levantar a tampa do carrinho.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Eu então o
encarei atento. Nunca se deve deixar de ouvir o sonho de alguém. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">– Rapaz,
sonhei que os picolés tinham virado água. Todo o mundo ficava zangado comigo,
porque quando eu ia pegar o picolé, tudo era só água, e a água ficava mudando
de cor, cor de uva, cor de abacaxi, cor de chocolate. Nossa, que humilhação
danada! Ainda bem que foi sonho. O bom de sonhar coisa ruim é que você acorda e
desfaz o susto. Em compensação, sonhar coisa boa às vezes te ilude. Você acorda
e a coisa boa era só sonho.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Ele abre a
tampa do carrinho, não sem antes fazer um pequeno gesto de hesitação. Constata,
enfim, que os picolés estão intactos e sorri um sorriso menos de zombaria e
mais de alívio. Enquanto lhe entrego a nota de dois reais, uma baforada gélida
escapa e nos envolve, trazendo à memória a imagem do menino que se debruçava no
refrigerador da padaria e mergulhava meio corpo no recipiente gelado com a
missão de escolher muito rapidamente qual sabor de picolé compraria.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">O
sorveteiro me deseja um bom domingo e imediatamente reinicia a emissão sonora
que lhe é tão própria. Segue seu percurso, vai se afastando. Quando perto de
virar a esquina, ele passa a compor uma imagem digna de registro. Atrapalhado,
acumulo nas duas mãos o picolé e, na posição horizontal, o celular com o qual
pretendo tirar uma foto do sorveteiro inserido na atmosfera alaranjada do
entardecer de inverno. Permaneço imóvel e concentrado. Estou prestes a captar o
momento exato em que um raio de sol incidirá no carrinho. Não vai derreter. Vai
brilhar. <o:p></o:p></span></p><p align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0.35cm;">
</p><br /><p align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0.35cm;"><span style="color: #2b00fe;"><b></b></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="color: #2b00fe;"><b><a href="https://1.bp.blogspot.com/-yVH-he-TRvg/YS7ZYjp7ieI/AAAAAAAAIV8/4fUPX55mVz8xDc_Tlg2hRfceSitsTOTdgCNcBGAsYHQ/s2048/20210807_170818%255B1%255D.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1660" height="320" src="https://1.bp.blogspot.com/-yVH-he-TRvg/YS7ZYjp7ieI/AAAAAAAAIV8/4fUPX55mVz8xDc_Tlg2hRfceSitsTOTdgCNcBGAsYHQ/s320/20210807_170818%255B1%255D.jpg" width="259" /></a></b></span></div><span style="color: #2b00fe;"><b><br /><span style="font-family: inherit;"><br /></span></b></span><p></p><p align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0.35cm;"><span style="color: #2b00fe; text-align: left;"><b><span style="font-family: inherit;">Livros do autor</span></b><span style="font-size: 14pt;">:</span></span><span style="font-size: 14pt; text-align: left;"> </span><a href="https://www.editorajaguatirica.com.br/produtos/a-vida-e-um-sorvete-derretido/" style="font-size: 14pt; text-align: left;" target="_blank"><i><span style="color: #674ea7;">A vida é um sorvete derretido</span></i></a><span style="font-size: 14pt; text-align: left;"> e </span><a href="https://editoraquatrocantos.lojaintegrada.com.br/viva-ludovico" style="font-size: 14pt; text-align: left;" target="_blank"><i><span style="color: #674ea7;">Viva Ludovico</span></i></a></p>Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-78603006829419077912021-07-08T23:29:00.005-03:002023-01-07T15:13:14.951-03:00Desentendidos<p> </p><p></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Alguém podia ajudar ela aqui?</span><o:p></o:p></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">A mulher
apontou para um corpo imóvel deitado no chão. Velha, agasalhada, olhos
fechados, barriga para cima sobre a qual as duas mãos entrelaçavam os dedos,
pose de defunta. Criou-se logo um pequeno tumulto.</span><o:p></o:p></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Senhora,
senhora. A senhora tá bem?</span><o:p></o:p></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Clamava uma
adolescente, enquanto ao lado a mulher que a acompanhava, provavelmente sua
mãe, digitava a tela do celular.</span><o:p></o:p></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Pra chamar
ambulância é 192?</span><o:p></o:p></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Quando todos
já se convenciam de que se tratava de um caso perdido, os olhos da velha se
abriram assustados. Ela usava toca e máscara. O rosto quase todo tampado
deixava o olhar confuso em evidência. Passou então a esfregar as mãos pelo
corpo, debatia-se como um bebê inábil em coordenar os movimentos dos braços e
das pernas. </span><o:p></o:p></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">O que a
senhora tá sentindo?</span><o:p></o:p></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">A velha se
levantou sem dar atenção às vozes que chamavam por ela. O que lhe interessava
era mirar o alto. Talvez já fosse íntima do céu sem estrelas. As pessoas ao
redor ficaram chateadas. Logicamente, a primeira impressão era a de que elas
estavam contrariadas pela perda de tempo. Mas tenho pra mim que o aborrecimento
delas se devia à frustração de não terem conseguido cada qual sua medalha de
benevolência. Ser bom e ser melhor têm muito mais a ver com o comparativo de
superioridade do que nos ensina a gramática.</span><o:p></o:p></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Enquanto todos
se dispersavam, a velha mantinha um animado bate papo com o céu escuro, talvez
o único interlocutor que conseguia decifrar sua linguagem formada por grunhidos
e gargalhadas.</span><o:p></o:p></p>
<p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Tempos depois,
uma ambulância surgiu apressada, gritando e emitindo luzes que pareciam
refletidas a partir de um estroboscópio de discoteca. Deu três voltas no
entorno de onde não havia sinal de que alguém precisasse dela e, por fim, foi
embora. Devagar, silenciosa, apagada, triste.</span><o:p></o:p></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><br /></span></p><p class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="line-height: 115%;"><span style="color: #2b00fe;"><b><span style="font-family: inherit;">Livros do autor</span></b><span style="font-size: 14pt;">:</span></span><span style="font-size: 14pt;"> </span><a href="https://www.editorajaguatirica.com.br/produtos/a-vida-e-um-sorvete-derretido/" style="font-size: 14pt;" target="_blank"><i><span style="color: #674ea7;">A vida é um sorvete derretido</span></i></a><span style="font-size: 14pt;"> e </span><a href="https://editoraquatrocantos.lojaintegrada.com.br/viva-ludovico" style="font-size: 14pt;" target="_blank"><i><span style="color: #674ea7;">Viva Ludovico</span></i></a></span></p>
<br /><p></p>Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-70668214149337073132021-04-04T10:41:00.005-03:002023-01-07T15:13:28.420-03:00Ressurreição <p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-6P9nzTV9ffw/YGnBa9hX9hI/AAAAAAAAIPk/H4pzFbFMphY3-pbIOaRsJgWEJlrz249CwCNcBGAsYHQ/s2048/20190413_122313%2B%25282%2529.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1536" data-original-width="2048" src="https://1.bp.blogspot.com/-6P9nzTV9ffw/YGnBa9hX9hI/AAAAAAAAIPk/H4pzFbFMphY3-pbIOaRsJgWEJlrz249CwCNcBGAsYHQ/s320/20190413_122313%2B%25282%2529.jpg" width="320" /></a></div><br /><p></p><p><br /></p><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">Antes árvore, agora sol na tua cara. É o que estava pichado em vermelho no muro branco. Vasculhei o arredor e me alegrei por ter entendido o sentido da frase, orgulho besta parecido ao de quem desvenda uma charada.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">A julgar pelo calibre do tronco cortado quase ao rés do chão, a árvore tinha porte suficiente para sombrear um terço da rua, incluindo o muro pichado que agora, exposto, recebia a incidência do sol abrasador. No canteiro onde estavam os despojos da árvore, pequenas flores coloridas haviam se espalhado feito aqueles minúsculos insetos que orbitam a banana passada, e isso, associado ao que estava escrito no muro, legítimo e retumbante epitáfio, dava ao cenário contornos de funeral.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">Por dias me auto pressionei com a pergunta intermitente: por que não fotografei? Pois então retornei à rua onde enquadrei com a tela do celular vários ângulos do que a partir de então estava devidamente registrado no catálogo de fenômenos da dinamicidade urbana. E foi sorte.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">Digo sorte porque poucos dias depois, como se por efeito de um ato profanador de memórias, o muro foi pintado pela metade, restando do epitáfio as palavras “sol na tua cara”, que, remanescentes e desconexas com o contexto geral da cena, foram reduzidas a um grito incompleto sem força de eloquência. Quem quer que tenha pintado o muro também quis deixar algum recado: seja sobre estender um pouco mais o mísero pedaço da homenagem, seja simplesmente sobre dar mostra da incompetência da zeladoria pública. Ocorre que, na semana seguinte, o muro foi pintado por completo e as florezinhas que coloriam o sepulcro arbóreo foram todas elas ceifadas.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">Quis a coincidência, dessas que nos iludem ou, o que talvez dê no mesmo, amenizam nossa desilusão, que neste domingo de Páscoa, 21 de abril de 2019 (os céticos do futuro conferirão no calendário), eu estivesse na rua em que tudo se passou. Não há nada mais que se refira ao memorial da árvore abatida. Só que, sobrevindo ao epitáfio, às flores e ao registro da fotografia de celular, há um ramo que eclodiu do meio do cotoco de tronco ressequido. É ainda fino, frágil, verde, mas aponta na direção do céu.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">Outras crônicas do autor no livro <a href="https://www.editorajaguatirica.com.br/produtos/a-vida-e-um-sorvete-derretido/" target="_blank"><i><span style="color: #2b00fe;">A vida é um sorvete derretido</span></i></a></span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div>Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-30567733676618909112020-12-17T22:04:00.009-03:002023-01-07T15:13:58.414-03:00Desmascarado<p><span style="font-size: 14pt; text-align: justify;"><br /></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Fui com a cara, com a coragem, com a
máscara e com o cabelo crescido, tão descontroladamente crescido que recebeu do
barbeiro o seguinte diagnóstico: <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">— É, já tava na hora, né!?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Barbeiro das antigas, sua altura, ou
a falta dela, servia de inspiração para o apelido e para o nome do
estabelecimento, Barbearia do baixinho. Pediu que eu me sentasse no cadeirão
típico das barbearias e depois, num movimento parecido ao do pescador que joga
sua tarrafa para bem longe, cobriu-me com uma capa branca, de mim só sendo visível
o pescoço para cima. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Havia na barbearia outros barbeiros
que cuidavam de seus respectivos clientes, todos mascarados, mas deixemos que eles
fiquem na condição de meros figurantes da cena, importando destacar a mulher
que entrou dividida entre carregar um bebê no colo e abrir a porta da barbearia.
Ela usava uma máscara colorida com desenhos da galinha pintadinha, e o bebê, criaturinha
portadora do passaporte especial dos imunizados, era o único no recinto com o
rosto completamente à vista. Baixinho me pediu licença e foi até onde estavam
os dois. Pelo que entendi, a mulher era sua filha, e o bebê, seu neto. Através
do espelho, vi que ele fazia palhaçadas para tentar arrancar um sorriso da
criança. Não conseguiu. Ao retomar o trabalho, estava visivelmente frustrado. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Cortar, aparar, raspar são serviços
quase sempre acompanhados pelo bônus consistente no que os barbeiros
desenvolveram como elemento tradicional ao ofício: a conversa. Como se se
dirigisse a um velho conhecido, Baixinho tratou de manifestar seu ponto de
vista sobre a conjuntura da epidemia. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">— O brasileiro não tem disciplina.
Ninguém sabe usar direito a máscara.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Mal terminou de falar e teve um
insight. Parou o que estava fazendo e quando olhou para o espelho deu de cara
com seu reflexo a lhe mostrar que a máscara só tampava a boca, deixando de fora
o nariz. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">— Tá vendo só?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Ele disse isso não sabendo exatamente
a reação escondida por detrás da minha máscara. Seu comportamento não era tanto
de embaraço, mas mais de orgulho pelo fato de que sua tese havia se comprovado
de imediato e bem à frente dos nossos olhos. Aí está o homem em demasia,
acerta, erra, tem razão por estar certo de que está equivocado. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Um tempo depois e só o que restava
sobre minha cabeça era uma camada de fios curtos, de um jeito que dava pra
notar alguns pontos de clareira. Minha calvície não será do tipo que avança
pelas entradas da testa, e sim daquelas em que o cabelo começa a minguar em
áreas espalhadas do couro cabeludo. Para isso existe solução, pelo menos é o
que Baixinho me assegurou, inclusive explicando como é o tratamento. Falou
ainda sobre futebol, política, comportamento e religião, ocasião em que pegou
uma bíblia guardada na gaveta abaixo do espelho. Ao encontrar uma página
previamente marcada, anunciou o versículo e leu o seguinte trecho: “Agora,
filho do homem, apanhe uma espada afiada e use-a como navalha de barbeiro para
rapar a cabeça e a barba. Depois tome uma balança de pesos e reparta o cabelo.”<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;">Sim, demorou, mas enfim o trabalho
ficou pronto. Antes mesmo de me desvestir a capa branca, Baixinho se deslocou
apressado até uma das cadeiras que serviam para a espera dos clientes, lá onde
estava sentada sua filha com o neto no colo. Postou-se então na frente dos dois
e retirou a máscara do rosto. O menino, até aquele momento amuado e manhoso, se
iluminou por efeito de uma gargalhada contagiante, se é que esse seria o melhor
adjetivo em tempos como estes. Foi bem rápido. Movido por um impulso de urgência,
Baixinho recolocou a máscara, inclusive tampando o nariz. Ao voltar para perto
de mim, estava visivelmente satisfeito.</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><br /></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><i><br /></i></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><i>Mais crônicas do autor no livro</i> <a href="http://www.flaviosanso.com/p/a-vida-e-um-sorvete-derretido.html" target="_blank"><i><span style="color: #2b00fe;"><b>A vida é um sorvete derretido</b></span></i></a></p><span style="line-height: 115%;">
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="line-height: 115%;"><i>Acesse o mais recente romance do
autor, com promoção, no link</i> <span style="color: #2b00fe;"><i><a href="http://www.flaviosanso.com/p/viva-ludovico.html" target="_blank"><b>Viva Ludovico</b></a></i></span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-size: 14pt; text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;"><span style="font-size: 14pt; line-height: 115%;"><span style="color: #2b00fe;"><br /></span></span></p></span><p></p>Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-15544591151586104492020-05-17T20:46:00.002-03:002023-01-07T15:14:14.862-03:00A redenção dos bichos<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">O posto de rei das selvas precisava
ser atualizado. Uma área descampada passou a servir de palco para os embates.
Defendendo o seu reinado, o leão até então havia vencido todos os animais que
ousaram enfrentá-lo, restando como último adversário um rinoceronte natural das
savanas mais arbóreas ao sul. O leão achou que suas vitórias haviam sido muito
fáceis e por isso queria uma luta final mais desafiadora. A solução foi
transferi-la da área descampada para a paisagem de matagal, lugar com o qual
seu oponente estava mais familiarizado. Mesmo com um pouco mais de dificuldade,
o leão, enfim, venceu. Sua conquista foi menos entediante, e ele foi confirmado
como rei das selvas, ao menos até o dia seguinte quando morreu vítima de um
tipo de carrapato insaciável só encontrado em regiões de matagal. Por justiça,
o carrapato foi então declarado o novo e legítimo rei das selvas. </span><o:p></o:p></div>
<div class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Essa é uma fábula de arrogância,
prepotência ou simplesmente de ingenuidade quanto a agarrar-se a uma condição
de importância ilusória que se atribui a si mesmo. Há nela algo de Davi e
Golias, algo de Cavalo de Troia e, mais especificamente quanto ao leão, há
muito do homem.</span><o:p></o:p></div>
<div class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">O homem, essa criatura tão habituada
a engaiolar passarinhos, a confinar bois e porcos, a envidraçar peixes, quem
diria, agora está trancafiado porta adentro sem previsão de poder voltar a
espalhar perturbação por aí. Ora, ora, pois então é a vez de os bichos irem à
forra. Mais à vontade, sossegados e imunes, terão oportunidade de observar, do
lado de fora, a aflição da humanidade enclausurada, talvez até se distraiam com
o que poderia ser definido como um jardim zoológico às avessas. </span><o:p></o:p></div>
<div class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Por essa razão, em pleno ambiente
urbano, surgem tipos de bichos que em condições normais não costumam se expor
ao temerário convívio com o <i>homo sapiens.</i> Da minha janela, já acompanhei
a revoada de três tucanos que por alguns minutos fizeram escala em calhas e
antenas parabólicas. Também já me deparei com um gavião rajado que se demorou
em pose altiva na cumeeira de um telhado. São tempos em que passei a ouvir com
frequência, vinda das árvores do entorno, a algazarra de miquinhos serelepes e
histriônicos. Como se não bastasse, testemunhei a aparição de uma ave belíssima
que até então eu desconhecia. Depois, em consulta ao google com os termos “ave,
cara preta, peito branco, asas roxas”, descobri que se tratava de uma
gralha-do-campo. E ainda quanto a toda essa desenvoltura dos bichos, quero
falar sobre Orfeu.</span><o:p></o:p></div>
<div class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Dei o nome de Orfeu a um gato que, ao
longo da quarentena, se revelou muito afeito a passeios noturnos, honrando uma
das mais inerentes tradições felinas. Sempre antes de dormir, quando me
aproximava da janela para fechá-la, lá estava ele misturado à escuridão da rua,
confortável em sua solidão, os movimentos camuflados pelo silêncio eram quase
imperceptíveis. Por noites e noites, como se em obediência ao horário de um
remédio, cumpri o ritual de observar a caminhada vagarosa e elegante de Orfeu.
Mas houve a ocasião em que, desastrado, cometi o erro de fechar a janela com
muita força. Orfeu se assustou e se virou abruptamente para a minha direção.
Seus pequenos olhos brilhantes me encararam com desgosto. Antes de retomar a
caminhada, deixou que seu olhar de fuzilamento exprimisse um tipo de bronca tão
contundente que, embora direcionada a mim, serviria para qualquer outro ser da
minha espécie. A partir de então, na hora de fechar a janela, nunca mais voltei
a ver Orfeu. Quase nada é tão constrangedor quanto se perceber indesejado. É o
sinal de uma derrota. </span><o:p></o:p></div>
<div class="western" style="margin-bottom: 9.9pt; text-align: justify;">
<a href="https://www.blogger.com/null" name="_Hlk40639830"><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">E a derrota
está na ordem do dia, do mês, do ano, do século. Em pequena ou grande escala,
estamos derrotados. Humilhantemente derrotados. Veja, por exemplo, se não é uma
fragorosa derrota o fato de o império do mundo, tão perdulário na gastança de
trilhões para sustentar sua máquina de guerra, ter tido parte da população
dizimada, sem nem ter podido fazer uso da sofisticação de suas armas de defesa
e ataque. Não foi terrorismo, não foi o poderio de um exército rival.
Especula-se que isso se deu, ora, ora, graças ao bicho sacrificado cruelmente,
talvez um morcego, talvez um pangolim, em favor do costume de se criar iguarias
exóticas. Há pesquisadores que não atribuem ao vírus a condição de ser vivo,
por lhe faltar a capacidade de se reproduzir independente do hospedeiro
infectado. Sendo isso mesmo, somos mais fracassados do que o leão da fábula.</span></a><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></div>
<br />
<span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 18.6667px;"><br /></span></span>
<span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 18.6667px;">Livros do autor: </span></span><br />
<span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 18.6667px;"><br /></span></span>
<table cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="float: left; margin-right: 1em; text-align: left;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-W1MW21A6ue8/XsHKuteOiMI/AAAAAAAAHS8/iIL7UBDtJkAC52UZ5kc8J70gjIOIXSlYQCNcBGAsYHQ/s1600/A%2Bvida%2B%25C3%25A9%2Bum%2Bsorvete%2Bderretido_capa.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; margin-bottom: 1em; margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="640" height="200" src="https://1.bp.blogspot.com/-W1MW21A6ue8/XsHKuteOiMI/AAAAAAAAHS8/iIL7UBDtJkAC52UZ5kc8J70gjIOIXSlYQCNcBGAsYHQ/s200/A%2Bvida%2B%25C3%25A9%2Bum%2Bsorvete%2Bderretido_capa.jpg" width="133" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i><span style="font-size: small;"><a href="http://www.flaviosanso.com/p/a-vida-e-um-sorvete-derretido.html" target="_blank">A vida é um sorvete derretido</a><br /><br /><br /></span></i></td></tr>
</tbody></table>
<span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><a href="http://www.flaviosanso.com/p/a-vida-e-um-sorvete-derretido.html" target="_blank"><br /></a></span>
<span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 14.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><i><br /></i></span>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<table cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em; text-align: left;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><i style="clear: left; margin-bottom: 1em; margin-left: auto; margin-right: auto;"> <a href="https://1.bp.blogspot.com/-faPCnpT275A/XsHLqL98ptI/AAAAAAAAHTM/6n84ADcCdAcgL1dcVemQTrc_pF9BGQpnwCPcBGAYYCw/s1600/Viva%2BLudovico%2B-%2Bcapa.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; margin-bottom: 1em; margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="684" height="200" src="https://1.bp.blogspot.com/-faPCnpT275A/XsHLqL98ptI/AAAAAAAAHTM/6n84ADcCdAcgL1dcVemQTrc_pF9BGQpnwCPcBGAYYCw/s200/Viva%2BLudovico%2B-%2Bcapa.jpg" width="142" /></a></i></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><a href="http://www.flaviosanso.com/p/viva-ludovico.html" target="_blank"><i><span style="font-size: small;">Viva Ludovico</span></i></a></td></tr>
</tbody></table>
</div>
Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-17200890816548806672020-04-12T22:54:00.000-03:002023-01-07T15:14:30.204-03:00Me solta<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Foi-se o tempo em que o nariz entupido era uma
insignificância, um incômodo banal. Foi-se o tempo em que uma dor de cabeça
fraquinha era só uma dor de cabeça fraquinha. Nesse tempo, tossir quase sempre
não passava de um ato involuntário, mecânico, imperceptível como um cacoete.
Nesse tempo recente e também já distante, coçar os olhos, meter o dedo na boca,
apertar distraidamente a mão de alguém não trazia à consciência o peso de ter
cometido um pecado sem perdão. Nada disso hoje permanece indiferente ao alerta
paranoico ou não da preocupação sobre sintomas e diagnósticos. Penso nesse
tempo com saudade e enquanto engulo seco para testar a saúde da minha garganta,
ouço um som peculiar que interrompe o silêncio lá fora. </span><o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">É a buzina do motociclista pago pela associação de moradores
para fazer a ronda noturna pelas ruas do bairro. Ao longo do percurso, vai
cruzar com outros motociclistas portadores de mochilas cúbicas e multicoloridas
a caminho de onde a fome dos confinados os aguarda. Aliás, nestes dias de
trânsito reduzido, a orquestra formada pelos escapamentos das motos, em seus
mais variados tons, domina o pouco que a cidade anestesiada produz de barulho.
Por falar em barulhos e sons, é coincidência que logo agora eu ouça gritos,
gritos de criança. </span><o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Vou até a janela e vejo lá fora a figura de um homem de
cabelos brancos: um idoso, conforme linguajar técnico que define um dos componentes do grupo de risco. Ele está envolvido por uma áurea de descuido e
teimosia. Primeiro, pelo simples fato de perambular pela rua. Segundo, porque
está sem camisa, mesmo em meio a uma garoa fina que começa a se intensificar. E
terceiro, porque desobedece aos gritos da criança que chama por ele. Sim, um
menino, provavelmente neto do idoso, implora para que ele volte para a casa.
Hipnotizado pela curiosidade, o idoso segue na direção de um outro foco de
barulho, que logo identifico como uma briga.</span><o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Não consigo ver o lugar da rua onde a confusão se desenrola.
Tenho a visão obstruída por um pequeno prédio em construção. O que me resta
então é me orientar pelas informações sonoras. Há as vozes que vociferam
insultos e também as que tentam esfriar os ânimos. Muitas são as pessoas
envolvidas na briga, a julgar pela variedade dessas vozes. Uma delas é que me
chama mais a atenção. Alguém, de um modo choroso, grita repetidas vezes: me
solta, me solta, me solta. No meu campo de visão, surge uma mulher.
Provavelmente filha do idoso, ela o puxa pelo braço como se o resgatasse de um
ambiente radioativo. Enquanto isso, as vozes vindas da contenda continuam
ecoando, especialmente aquela que grita: me solta, me solta, me solta.</span><o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">E a briga ainda persiste por uma duração exageradamente
anormal até para padrões de quem tenha quilômetros de diferenças a acertar. Os
que participam dela ignoram a chuva, a aglomeração e o perigo do contágio.
Talvez queiram prolongar a briga indefinidamente. Para sempre, se pudessem.
Talvez a façam perdurar como meio de fingir que ainda estão livres, como meio
de se agarrar desesperadamente a um jeito de viver que acabou. Vejo o
motociclista vigilante parar a moto para observar o tumulto. De longe. E ouço
mais algumas vezes a pessoa que grita chorosamente: me solta, me solta, me
solta. Desconfio que há algum tempo já a deixaram de segurar.</span><o:p></o:p><br />
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span>
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span>
<span style="font-size: 18.6667px;">Livros do autor: <i> <a href="http://www.flaviosanso.com/p/viva-ludovico.html" target="_blank"><b><span style="color: purple;">Viva Ludovico</span></b></a></i><b> <a href="http://www.flaviosanso.com/p/a-vida-e-um-sorvete-derretido.html" target="_blank"><i><span style="color: purple;">A vida é um sorvete derretido</span></i></a></b></span></div>
<br />Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-44136820328270004952020-03-09T21:32:00.002-03:002023-01-07T15:14:50.896-03:00O colorido do elefante branco<br />
<div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0.35cm;">
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">A cancela sobe aos trancos e quando desce faz um rangido que denuncia a manutenção precária. Enquanto esse mecanismo funciona só ainda por causa de algum tipo de teimosia das correias, sensores e fusíveis, ao lado, uma voz feminina dá boas vindas e é só o que se consegue entender, porque a partir daí a gravação embola como se por efeito de um disco arranhado, timbre eletrônico engasgado, quem foi que disse que os robôs também não gaguejam?</span><o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">Quando alguém se aproxima, a porta deslizante parece reagir com preguiça. Pra pegar no tranco, é quase preciso que se encoste nela, um retrocesso e tanto para o avanço tecnológico que resguarda a comodidade dos clientes, e olha que já houve tempo em que bastava a pessoa aparecer a uns metros de distância para então a porta se arreganhar prontamente numa eficiência típica de funcionária do mês. O corredor é amplo, tem dimensões de túnel. Ao avançar por ele, é fácil perceber que a iluminação está mais fraca. É porque mais da metade das lojas fechou. Antes mesmo de ser erguido, este shopping, enorme construção horizontal aos moldes dos métodos arquitetônicos de vanguarda, era alardeado como empreendimento gerador de empregos, um combustível para o impulso da economia, hoje, no entanto, não é muito mais do que um definhante monumento às novidades que envelhecem mal.</span><o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">Uma música quase inaudível embala o almoço de poucas pessoas a quem os restaurantes fast food de sempre não deixam faltar o pão com gergelim de cada dia. O lugar aonde quero chegar fica além da praça de alimentação. Avanço para os fundos do shopping, onde então atravesso outra porta deslizante. A perder de vista, o estacionamento se espalha pela área de muitos metros quadrados. Por todos os lados há retângulos demarcados no chão. Apenas duas filas de carros destoam entre centenas de vagas desocupadas. Por vezes, esse espaço ocioso tem servido à estadia de algum circo, que vem, fica e, conforme é de sua natureza, vai. Ninguém precisa se preocupar com os buracos que são feitos no concreto para sustentar a lona. Enfim, já passou da hora de dizer por que estou parado neste estacionamento vazio. Tenho na verdade um compromisso, que é quase um encontro.</span><o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">Espero por duas pessoas que vêm sempre aqui. Com o tempo, constatei que é certeza aparecerem no início das tardes de sábado. O que não me deixa mentir é o fato de que, pontuais, aí estão eles. A mulher pedala uma daquelas bicicletas cuja parte da frente é adaptada para o carregamento de cargas. Só que no lugar da carga é um homem que vai sendo conduzido. Ele é velho, suas pernas balançam na frente do pneu, são pernas muito finas a ponto de passarem a impressão de que não são suficientemente firmes para fazer o homem andar normalmente.</span><o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">As pedaladas vigorosas fazem a bicicleta ganhar grande velocidade, o percurso segue em zigue e zague, em linha reta e depois contorna todo o perímetro do estacionamento. Não há destino para onde se queira ir. O passeio é o próprio fim em si mesmo. Em alguns momentos, dá pra ouvir a mulher perguntar repetidas vezes: Tá gostando? É uma pergunta retórica, considerando os braços do velho, estendidos como se querendo abraçar o vento. Tudo dura por volta de quinze minutos, se é que nesta altura existe importância em mensurar o tempo.</span><o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">A cancela está emperrada, não se sabe se ela parou ao subir ou ao descer. Isso, porém, não afeta o trajeto da bicicleta. Ela se move desenvolta e sai do estacionamento pelo pequeno vão entre a cancela e a calçada. Misturada ao trânsito da cidade, a dupla desaparece no ritmo de pedaladas de despedida. Olho para o estacionamento, há silêncio por toda a sua amplitude. Também olho para a fachada do shopping. É ou não é um empreendimento de sucesso?</span><o:p></o:p><br />
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span>
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<table cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em; text-align: left;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-YvLzkGJr-2E/XmehVYgvTCI/AAAAAAAAG38/BmaVgi5RXP0DybdHBXD4lmRo02gYWO4YACNcBGAsYHQ/s1600/Viva%2BLudovico%2B-%2Bcapa.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; margin-bottom: 1em; margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="684" height="200" src="https://1.bp.blogspot.com/-YvLzkGJr-2E/XmehVYgvTCI/AAAAAAAAG38/BmaVgi5RXP0DybdHBXD4lmRo02gYWO4YACNcBGAsYHQ/s200/Viva%2BLudovico%2B-%2Bcapa.jpg" width="142" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><span style="color: purple; font-size: small;"><b><i><br /><a href="http://www.flaviosanso.com/p/viva-ludovico.html" target="_blank"><span style="color: purple; font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Detalhes</span></a></i></b></span></td></tr>
</tbody></table>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-vNNkgYHF6kI/XmehbhrrpmI/AAAAAAAAG4A/9veF2pxfunEMA7oNVWVVFbADRD4TJY0LACNcBGAsYHQ/s1600/A%2Bvida%2B%25C3%25A9%2Bum%2Bsorvete%2Bderretido_capa.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="640" height="200" src="https://1.bp.blogspot.com/-vNNkgYHF6kI/XmehbhrrpmI/AAAAAAAAG4A/9veF2pxfunEMA7oNVWVVFbADRD4TJY0LACNcBGAsYHQ/s200/A%2Bvida%2B%25C3%25A9%2Bum%2Bsorvete%2Bderretido_capa.jpg" width="133" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><b><i><span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: small;"><br /><a href="http://www.flaviosanso.com/p/a-vida-e-um-sorvete-derretido.html" target="_blank"><span style="color: purple;">Detalhes</span></a></span></i></b></td></tr>
</tbody></table>
<br />
<br /></div>
Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-75743082891177206822020-01-28T21:38:00.004-03:002023-01-07T15:15:16.741-03:00Cinco estrelas<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">Aconteceu na rua apelidada de Estacionamento dos ubers. É onde vários motoristas costumam esperar dentro do carro o chamamento de seus clientes remotos. O chofer da nova era prescinde de trafegar por aí à cata de braços estendidos. A qualquer momento pode soar o sinalzinho sonoro dos celulares suspensos no apoio acoplado no interior dos vidros dianteiros e aí o coração acelera e os olhos ficam atentos na esperança de uma boa corrida. Como eu dizia, aconteceu na rua apelidada de Estacionamento dos ubers. Um dos motoristas saiu apressado do carro, apertou o botão da trava elétrica, pli pli, e depois caminhou até o outro lado da rua. Em pouco tempo, os demais motoristas também estariam no outro lado da rua ao redor de uma gaiola de lixo.</span><o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">A gaiola de lixo estava vazia, ou melhor, estava vazia de lixo, porque dentro dela havia um cachorro de pelagem inteiramente preta, com aspecto de filhote e confuso a respeito da enrascada em que se metera. Alguém tomou a iniciativa de envolver o braço cuidadosamente ao longo da barriga do bicho, mas antes que o pudesse erguer, um grito agudo interrompeu o socorro. Uma das patas de trás estava presa num vão entre os ferros entortados da gaiola.</span><o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">Não tem jeito, só com equipamento mesmo, concluiu algum experimentado em ferragens. A solução foi chamar os bombeiros. Não que eu esteja desdenhando da missão, longe disso, o fato é que eles chegaram paramentados como se estivessem preparados para apagar um incêndio florestal do nível australiano, nisso incluindo o porte de mangueiras e a presença de um caminhão-pipa. O bom é que também trouxeram uma espécie de alicate tamanho extra grande. Usá-lo para retorcer o ferro sem risco para a pata tão frágil do cachorrinho exigiu habilidade de alguém que faz costuras sem o dedal. Quando enfim concluído o resgate, houve comemoração dos que testemunhavam a cena. Parecia a volta da luz depois de um apagão.</span><o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">Todos se aquietaram quando o bombeiro advertiu que, largado na rua, o filhote não sobreviveria naquelas condições em que a pata machucada exigia cuidados. Olhares de sugestionamento logo convergiram para a única mulher entre o grupo de motoristas. Provavelmente era de conhecimento geral algum histórico de ações ditadas pelo coração molenga. Ela relutou, alegou falta de espaço, falta de dinheiro, falta de tempo, mesmo assim adianto que este é um caso de consagração aos que ainda são adeptos a finais felizes.</span><o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;">Sentado no banco do carona, o passageiro observava cada detalhe de um lugar que lhe era completamente estranho, curiosidade, expectativa, pata dolorida. Ao lado, desde que girou a chave na ignição até quando partiu com seu utilitário meia boca, a motorista nem sequer havia consultado o celular pendurado no interior do vidro dianteiro do carro.</span><o:p></o:p><br />
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span>
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span>
<br />
<span style="line-height: 21.4667px;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Livros do autor:</span><span style="font-size: 14pt;"> </span><a href="http://www.flaviosanso.com/p/viva-ludovico.html" style="font-size: 14pt;" target="_blank"><i><b><span style="color: purple;">Viva Ludovico</span></b></i></a><span style="font-size: 14pt;"> e </span><a href="http://www.flaviosanso.com/p/a-vida-e-um-sorvete-derretido.html" style="font-size: 14pt;" target="_blank"><i><b><span style="color: purple;">A vida é um sorvete derretido</span></b></i></a></span><br />
<br />
<span style="font-size: 14pt; line-height: 21.4667px;"><br /></span></div>
Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-49495513877421082632020-01-01T21:10:00.002-03:002023-01-07T15:15:32.845-03:00O mágico de rua<br />
<div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0.35cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">Há
uma pequena barraca exposta em frente ao cinema. Quero acreditar que
isso não </span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-family: "calibri" , sans-serif;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">seja</span></span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">
</span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">mero
acaso</span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">,
afinal </span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">o
que está escrito </span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-family: "calibri" , sans-serif;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">nela</span></span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">
–</span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">
o mágico de rua </span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">–</span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">
</span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">parece
ser uma alusão</span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">
ao filme O mágico de Oz.</span></span></span></div>
<div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0.35cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">Nosso
mágico de rua traja colete de feltro e chapéu de abas curtas,
acessórios que dão a ele aparência de artista improvisado, um
consultor mambembe de truques. Ainda assim, a impressão é que ele,
ao se arrumar em frente ao espelho, tenha estufado o peito e dito a
si mesmo: aí vai o melhor ilusionista de todos os tempos. Por isso é
uma pena ninguém ainda ter se interessado em </span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">conhecer
</span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-family: "calibri" , sans-serif;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">o</span></span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-family: "calibri" , sans-serif;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">s
baralhos especiais, os cartões em chama, a caneta flutuante e tantos
outros artigos da mágica </span></span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-family: "calibri" , sans-serif;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">raiz</span></span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-family: "calibri" , sans-serif;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">.
</span></span></span></span>
</div>
<div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0.35cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">Só
mesmo depois de um tempo é que, guiado pela mão do pai em sua nuca,
um menino se aproxima da pequena barraca. Ele então é convencido a
prestar atenção aos ensinamentos do mágico de rua, mas não há
nada que as cartas embaralhadas possam fazer para deixar a expressão
de seus pequeninos olhos menos entediada, reação compreensível de
quem certamente já se acostumou com os milagres cintilantes que
espocam na tela de um tablet. Ao final da exibição, o mágico de
rua se despede dos dois com um sorriso constrangido de frustração.
É hora de desmontar a barraca. O mágico de rua recolhe na bolsa a
mercadoria encalhada, ritual de um fracasso. </span></span></span>
</div>
<div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0.35cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">No
filme, Dorothy, </span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-family: "calibri" , sans-serif;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">o</span></span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">
espantalho, </span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-family: "calibri" , sans-serif;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">o</span></span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">
homem de lata e </span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-family: "calibri" , sans-serif;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">o</span></span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">
leão </span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">lançam-se
ao desafio de encontrar o Mágico de Oz, </span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">precisam
dele para que, por meio da magia, o desejo de cada um dos quatro seja
realizado. Já no caso do </span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-family: "calibri" , sans-serif;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">m</span></span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">ágico
de rua, </span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">não
houve nem sequer uma pessoa que recorresse </span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-family: "calibri" , sans-serif;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">às
suas habilidades com coisas de fantasia e ilusão. </span></span></span></span><span style="color: black;"><span style="font-size: 14pt;"><span lang="pt-BR">Não
são tempos que demandem encantos. </span></span></span>
</div>
<br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://1.bp.blogspot.com/-gRkgQ_5U4VA/Xht_gxhGHhI/AAAAAAAAGdg/K0XS09kq3aYUt55CiCYhfG9GdErDrjIXACNcBGAsYHQ/s1600/Viva%2BLudovico%2B-%2Bcapa.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="684" height="200" src="https://1.bp.blogspot.com/-gRkgQ_5U4VA/Xht_gxhGHhI/AAAAAAAAGdg/K0XS09kq3aYUt55CiCYhfG9GdErDrjIXACNcBGAsYHQ/s200/Viva%2BLudovico%2B-%2Bcapa.jpg" width="142" /></a></div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
Conheça o novo livro do autor:<i> <a href="http://www.editoraquatrocantos.com.br/loja/index.php/viva-ludovico.html" target="_blank">Viva Ludovico</a></i></div>
<br />Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-31565044257187927692019-11-08T21:04:00.002-03:002023-01-07T15:15:59.915-03:00Duelo de hesitantes <br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">É um mecanismo rápido e escandaloso. A porta se abre sem a
menor cerimônia, deixando à mostra um retângulo vertical e escuro. Lá de
dentro, uma imagem vai ganhando forma conforme se aproxima da luz exterior.
Bermuda, regata, sandálias de couro, o sujeito desce os três degraus
escorando-se nas alças de metal grudadas cada qual em uma metade da porta
retraída. Ao pousar um dos pés no chão, ele se desequilibra, a queda não é
espalhafatosa, o homem vai ao chão como se estivesse deitando para dormir.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Qualquer um sabe que nesta vida é toda hora que se cai, mesmo
assim ele está boquiaberto de surpresa, o que o faz vasculhar, ainda no chão, a
causa do incidente, não demorando a constatar que o ônibus parou com as rodas
traseiras bem em cima da curvatura de um quebra-molas. Ao se levantar, o homem
olha para os lados e se depara com duas testemunhas da cena estapafúrdia, aí é
que, além de embasbacado, ele também fica constrangido, e o constrangimento,
chave de uma porta infernal que abate os sensíveis e inflama os furiosos,
parece ter acendido nele a necessidade de protestar. Viram o que esse cara
fez?, pergunta às duas testemunhas, buscando apoio para a sua causa de
rebaixado ao raso do chão. Em seguida, posiciona-se na direção em que avista a
parte da frente do ônibus. Ao erguer os braços com as palmas das mãos viradas
para cima, faz questão de se mostrar reivindicador de alguma satisfação, de
algum pedido de desculpas, o que poderiam dizer dele se não desse vazão à
revolta?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Desde a queda até agora, é provável que o motorista esteja
assistindo a tudo pelo retrovisor. Pois então este é o momento em que ele sai
da porta dianteira do ônibus para inspecionar a situação. Enquanto caminha,
suspende a calça social de um jeito que é como se o cinto fracassasse em sua
função de evitar a frouxidão. Ele se põe a caminhar com movimentos calculados.
A princípio, mantém-se inexpressivo, mas isso até quando lhe é atirada uma
descompostura: não tem cuidado com os outros?, questiona o homem
recém-estabacado.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Eis mais uma vez o danado do constrangimento agora muito
visível no comportamento de quem acabou de ter o profissionalismo contestado. O
motorista fecha a cara e continua a andar na direção de seu contendor, que
também caminha rumo ao confronto. O plano de fundo é o ônibus parado com a
traseira levemente inclinada para cima, suas janelas de vidro fumê escondem os
passageiros certamente apreensivos sobre o que está para acontecer aqui do lado
de fora. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Quando estão muito próximos, cara a cara, ambos param ao
mesmo tempo, é como se algum obstáculo se erguesse à frente de cada um dos
dois. Por efeito de algum acordo implícito, eles então dão meia volta e se
afastam. Após darem dez passos, em vez de se virarem um contra o outro, seguem
cada qual seu rumo. Um duelo não é feito por oponentes que decidem relevar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span>
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-Z_IL28UC9r8/XelVGcVLkwI/AAAAAAAAGGc/X0o1EuNjF04wnQJbtXabyo3XnBqQayYkgCNcBGAsYHQ/s1600/A%2Bvida%2B%25C3%25A9%2Bum%2Bsorvete%2Bderretido_capa.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="640" height="200" src="https://1.bp.blogspot.com/-Z_IL28UC9r8/XelVGcVLkwI/AAAAAAAAGGc/X0o1EuNjF04wnQJbtXabyo3XnBqQayYkgCNcBGAsYHQ/s200/A%2Bvida%2B%25C3%25A9%2Bum%2Bsorvete%2Bderretido_capa.jpg" width="133" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><a href="https://www.editorajaguatirica.com.br/produtos/a-vida-e-um-sorvete-derretido/">Disponível aqui</a></td></tr>
</tbody></table>
<br /></div>
Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-54658960146830581222019-10-16T10:00:00.002-03:002023-01-07T15:16:10.288-03:00Raíssa, um flashmob e Getúlio Vargas<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">O que vai preencher as linhas desta crônica também poderia
ser narrado por Getúlio Vargas. Ambos estamos na praça, frente a frente, eu de
um lado da cena e ele do outro. Mas, considerando as restrições comuns à
imobilidade das peças de bronze, fica impossível saber as impressões causadas a
tão inanimada testemunha e por isso não vai ter jeito de a cena ser conhecida
senão por meio de uma única versão daquele entre nós dois que, a despeito de
não ser ilustre, ainda não saiu da vida.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">A praça está ocupada por muitos jovens, é provável que
ninguém ali tenha alcançado os quatorze ou quinze anos. O rádio de dimensões
oitentacentistas está em destaque sobre uma mesa. As caixas de som plugadas a
ele propagam músicas dançantes ao longo das quais os vocais agudos espocam
falsetes vibrantes, tudo muito ao gosto dos que têm no corpo reservatório
entupido de energia e disponibilidade emocional. Os curiosos vêm se aproximando
e agora é só deixar a cargo de um deles a tarefa investigativa, dito e feito,
uma senhora pergunta a uma das integrantes do grupo sobre o que se trata a
movimentação. É um flashmob, responde a garota. Adivinhando a falta de
entendimento da senhora, ela complementa: É uma coreografia que muitas pessoas
fazem no meio da rua.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">A mesma garota que esclareceu o conceito de flashmob agora está
aflita e, puxando o braço de sua amiga, começa a gritar: Vem, Raíssa, vem.
Raíssa, porém, titubeia, não vai, fica parada assistindo à amiga que, depois de
soltar-lhe o braço, corre para chegar a tempo de participar da coreografia. Ao
que parece, Raíssa está dominada por um ataque de timidez. E é uma pena, porque
o gorro, as calças largas, a camiseta cortada ao meio e o tênis confortável certamente
foram pensados para favorecer estética e funcionalmente a dança.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">A coreografia é feita de movimentos vigorosos, todos os
rostos reagem com exatidão às sensações expressas pela música: os semblantes
simulam ora tristeza, ora raiva e ora contentamento radiante conforme os
trechos da letra variam entre o drama amoroso, a decepção e, enfim, o encontro
apaixonado. Braços cruzados na frente do peito, Raíssa deixa transparecer a
frustração de ser apenas espectadora. Enquanto observa os outros jovens
dançarem, lança olhares rápidos para o próprio corpo, e essa alternação a faz murchar
cada vez que seu olhar se volta para si mesma.<span style="mso-spacerun: yes;">
</span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">A boa notícia é que, depois de um pequeno intervalo, outra
coreografia está para começar, e desta vez Raíssa não dá chances à hesitação,
atirando-se rumo ao meio do grupo, onde volta a se juntar à amiga com a qual
entoa gritinhos de comemoração, quem só agora as vê assim poderia imaginar que
este reencontro se dá depois de muitíssimo tempo. Raíssa se posiciona com ares
de concentração absoluta. De repente, desdobra-se em movimentos bruscos para
acompanhar a música que começa agitada. Ao longo da coreografia, seus passos de
dança não são exatamente iguais aos dos outros. Em especial, Raíssa também não
é igual aos outros quando sorri durante os trechos da música que expressam drama,
decepção. É que Raíssa sorri o tempo inteiro. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Ao sentenciar que entraria na História, Getúlio Vargas talvez
já soubesse que essa coisa de ser memorável também haveria de incluir a
pasmaceira eterna de estar imóvel em praças e coretos, expondo-se ao pouso dos
pombos que lhe sujam a cabeça, os ombros. Ao menos hoje, porém, congelado na
pose em que uma das mãos está enfiada no bolso e a outra está erguida como se
segurando um charuto, teve o privilégio de presenciar a história de uma pequena
vitória. <o:p></o:p></span><br />
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span>
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><i style="font-size: medium; text-align: center;"><a href="http://www.flaviosanso.com/p/livro-do-autor.html" target="_blank">Livros do autor</a></i></span><br />
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<a href="https://1.bp.blogspot.com/-Hnj0RK5ulzI/Xieei_td1mI/AAAAAAAAGj8/_iflHCGr4Z048ygMpT6NUExcK-uctOkmgCNcBGAsYHQ/s1600/Viva%2BLudovico%2B-%2Bcapa.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="684" height="200" src="https://1.bp.blogspot.com/-Hnj0RK5ulzI/Xieei_td1mI/AAAAAAAAGj8/_iflHCGr4Z048ygMpT6NUExcK-uctOkmgCNcBGAsYHQ/s200/Viva%2BLudovico%2B-%2Bcapa.jpg" width="142" /></a><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://1.bp.blogspot.com/-x_x3-lcTVFc/Xiee1h6Zi2I/AAAAAAAAGkE/zY-M_oCtADUj8KrVBlDKtvjDwAcQNTckACNcBGAsYHQ/s1600/A%2Bvida%2B%25C3%25A9%2Bum%2Bsorvete%2Bderretido_capa.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="640" height="200" src="https://1.bp.blogspot.com/-x_x3-lcTVFc/Xiee1h6Zi2I/AAAAAAAAGkE/zY-M_oCtADUj8KrVBlDKtvjDwAcQNTckACNcBGAsYHQ/s200/A%2Bvida%2B%25C3%25A9%2Bum%2Bsorvete%2Bderretido_capa.jpg" width="133" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><br /></span>
<span style="line-height: 115%;"><br /></span>
<span style="line-height: 115%;"><br /></span>
<span style="line-height: 115%;"><br /></span>
</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-58625907081550683472019-08-22T11:29:00.002-03:002023-01-07T15:16:20.742-03:00Assalto e outras impertinências <div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Certa vez ouvi dizer que Bob Dylan, em turnê por São Paulo,
recrutara o chefe de sua segurança para acompanhá-lo durante uma pequena
extravagância: caminhar, madrugada afora, de uma ponta à outra da Avenida
Paulista. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Confesso que também já fui de dar meus passeios pela
madrugada na ingenuidade de querer testemunhar a cidade disfarçada por uma
versão mais intrigante de si mesma. Mas é de se presumir que eu, não sendo Bob
Dylan e muito menos contando com um aparato de segurança pessoal, sofresse as
consequências de andar por aí numa espécie de expedição ao lado oculto da lua.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Portas descidas pela metade, os bares expulsavam seus últimos
frequentadores. Havia silêncio só interrompido pelo estardalhaço de uma ou
outra moto acelerando ao longe. Fazia frio, o que explica em parte o casaco
trajado pelo homem de mochila que aguardava a minha aproximação para pedir
ajuda em favor do sustento da família. Neguei por achar imprudente sacar minha
carteira naquelas circunstâncias. E dobrei a esquina. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Enquanto andava, percebi que, paralelo a mim, o homem de
mochila me acompanhava do outro lado da rua (agora me veio à mente uma cena do
filme De olhos bem fechados, de Stanley Kubrick). Éramos as únicas pessoas que vagavam
pelas intermitências de claro e escuro formadas conforme percorríamos as
distâncias entre os postes. Lembro ter pensado alguma maneira de recusar outro provável
pedido de dinheiro quando então o homem de mochila, numa manobra imperceptível,
surgiu à minha frente e com uma das mãos agarrou muito rapidamente a gola da
minha blusa de frio, olhos brilhando na penumbra. Acabou a brincadeira, me dá o
dinheiro, ele esbravejou enquanto mexia a outra mão encoberta pelo casaco. Por
ter acabado a brincadeira, entendi, claro, que agora entregar o dinheiro não
admitia alternativa consensual. Tive ainda o espírito de tirar todas as notas da
carteira para depois devolvê-la ao bolso de trás da calça. Ao pegar as notas de
dinheiro, o atacante precisou me largar e foi aí que aproveitei para correr, ocasião
em que escutei ele gritar: Peraí, me dá o celular também. Não obedeci,
continuei correndo até quando achei que deveria me virar para conferir. Nenhum
sinal dele. Sempre tive quase certeza que a mão por debaixo do casaco não
segurava arma alguma. Às vezes prefiro achar que não. Às vezes prefiro achar
que sim.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Uma história puxa a outra e agora me lembro da vez em que,
saindo da rodoviária, fui surpreendido por um rapaz que se ajoelhou aos meus
pés e, com a agilidade de um mecânico que troca os pneus de um carro de corrida,
começou a esfregar um produto cremoso nos meus sapatos, ignorando os apelos de
que eu não queria o serviço, de que eu estava com pressa, de que não havia
razão para que meus sapatos rotos fossem engraxados. Cheguei a ensaiar uma
retirada brusca, mas o rapaz, prevenido para esse tipo de reação, gritou de um
jeito que parecia que eu era um trambiqueiro disposto a não honrar a dívida. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Ele, enfim, terminou o trabalho indesejado e se postou à
minha frente. Estendi uma nota de cinco reais como sinal de rendição. Ele então
negou, dizendo que seu serviço custava vinte reais, contestei, discutimos. Mais
uma vez cedi e lhe entreguei uma nota de vinte reais. Ele pegou o dinheiro,
mas, com cara de impaciência, me advertiu que o preço era vinte reais cada
sapato. Tornava-se cada vez mais indignante me demorar naquela situação, ainda
mais porque outro rapaz, também carregando apetrechos de engraxate,
aproximou-se de nós e, reforçando o coro do colega, passou a me repreender
seguidas vezes: anda, dá o dinheiro do cara, é o trabalho dele. Eis o ardil da
coisa, qualquer um que testemunhasse a cena naquela altura me teria como
inadimplente arrogante. Pois bem, entreguei quase todo o meu dinheiro como
passaporte que me pudesse fazer escapar e por fim vi os rapazes se afastarem
enquanto nos despedíamos com saudações impublicáveis.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">De fato, isso de uma história puxar a outra, de um assunto
ter a ver com outro, leva à recordação dos tempos em que, conferindo o extrato
de cobrança de um empréstimo, constatei que os juros praticados pelos bancos
brasileiros são abissalmente maiores do que a média mundial.</span><br />
<br />
<br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif; line-height: 115%;"> <a href="https://www.editorajaguatirica.com.br/livros1/cronica/pre-venda-a-vida-e-um-sorvete-derretido/" target="_blank"><i>Clique para conhecer o livro de crônicas do autor</i></a></span><br />
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<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> </span></div>
Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-31513385306641599752019-06-09T23:15:00.001-03:002023-01-07T15:16:33.016-03:00Perspectivas de um peixinho dourado<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">A feira é livre, mas essa lógica não serve para os peixinhos
dourados que nadam – melhor dizer movimentam-se – nos poucos centímetros
cúbicos de água embalada em sacos plásticos pendurados ao longo da barraca.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Olhando de perto, a combinação entre transparência da água,
transparência do saco plástico, luz do sol, cor e imagem ilusoriamente deformada
do peixe provoca visual digno de exposição em museu de arte moderna. Ainda
assim, para além de impressões de luz e cor, o que se sobreleva são questões
existenciais ligadas a estas criaturas ensacadas individualmente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Os peixinhos dourados também devem ter lá os seus sonhos,
talvez anseiem por conhecer os oceanos, talvez a condição de estarem solitários
em cada um dos seus sacos os faça invejar as espécies de peixe que compõem
cardumes, daqueles imensos e populosos que lá no fundo do mar vão se movendo
como se dançassem uma coreografia frenética. Pode ser até que desejem só mesmo
a tranquilidade de viver em algum aquário ornamentado e com vista para a sala
de estar de uma família cuidadosa em salpicar na água, com regularidade de
medicação, a comida a base de proteína de plantas aquáticas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Ao meu lado, um cliente em potencial consulta a vendedora
sobre outro tipo de peixe, cuja presença ali eu ainda não havia notado. São
peixes também ensacados individualmente e que se destacam pela cor azul-escura
e pelas barbatanas imensas, algo carnavalescas. Querendo agradar a garotinha
com quem está de mãos dadas, ele revela sua intenção de levar muitos peixinhos,
juntando vários de cada espécie. Mas a vendedora, pondo-se acima de qualquer
vantagem comercial, troveja uma advertência severa, dizendo que, se colocados
juntos, o peixe de barbatanas exóticas, sem dó nem piedade, irá matar o peixe
dourado. De imediato a expressão da garotinha vai da euforia à desolação. A
vendedora percebe o susto no rosto dela e, tentando aliviar o que a informação
trouxe de aterrorizante, faz um gracejo: sabe, é que o peixe Betta é meio
encrenqueiro. Mas aí já é tarde. Ao que tudo indica, pai e filha estão desiludidos
a respeito da expectativa de criarem uma fauna encantada, a selvageria está
mesmo em quase tudo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Volto a olhar para um dos peixinhos dourados. Agora é ele
quem parece fazer análises sobre mim. Posso jurar que me acha ingênuo e é como
se sua boca abrindo e fechando sem parar me aplicasse uma lição. Se estar misturado
aos seus é a morte, então o melhor dos mundos é estar como ele está. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif; line-height: 115%;"><a href="https://www.editorajaguatirica.com.br/livros1/cronica/pre-venda-a-vida-e-um-sorvete-derretido/" target="_blank"><i>Clique para conhecer o livro de crônicas do autor</i></a></span></div>
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<br />Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1405685153509415651.post-74182027037518812032019-03-24T14:21:00.005-03:002023-01-07T15:19:00.973-03:00Uma obra devagar <div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">A obra na fachada da casa era em tudo avessa ao manual de
produtividade frenética dos dias de hoje, nem tanto porque quase nunca se notava
avanço significativo da quantidade de azulejos estampados em figuras
geométricas que revestiam a parede, mas mais por causa do que os pedreiros faziam
em concomitância com o trabalho, já havia presenciado animados debates sobre
política e futebol, já os havia ouvido cantar em coro uma música gospel de
refrão tocante e até já os havia visto dançar, nem mesmo os montes de areia,
pedra e cimento espalhados pelo chão atrapalhavam a evolução da coreografia
malemolente. Mas que isso não seja interpretado como procrastinação, ao menos
não uma procrastinação clandestina, afinal o próprio dono da casa não raro
também participava desses acontecimento de, digamos assim, distração entrelaboral.
<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Em determinado período, ao passar em frente à obra, eu me
deparava sempre com o mesmo pedreiro que, recostado junto à fachada em reforma,
segurava um copo americano com café pela metade (como eu sei que não se tratava
de um refrigerante de cola? – aqui uso esse termo esquisito, de modo a deixar claro
que não faço propaganda, que audácia!, para o maior conglomerado de bebidas do
mundo – Bem, primeiro porque ninguém que beba refrigerante recorreria àqueles
movimentos circulares tão tipicamente praticados para misturar o açúcar
acumulado no fundo do copo. Segundo, porque ninguém que beba refrigerante
recorreria àqueles movimentos circulares tão tipicamente praticados para esfriar
o líquido preto). A coisa se tornou tão frequente que até começamos a nos
cumprimentar, o maneio de cabeça representava o fato de que nos conhecíamos
pelo tempo daqueles três segundos diários. E então houve a ocasião em que,
diferente do habitual, ao me ver, ele reagiu erguendo bem alto o copo de café,
o que entendi ser um brinde aos trâmites desapressados, à divagação em meio ao
caos, ao intervalo contemplativo. É como se, ao levantar aquele copo, me
advertisse do mesmo jeito como um dia já o fizera o escritor Ambrose Bierce: Companheiro,
a pressa é o ritmo dos trapalhões.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Faz muito tempo que não passo pela rua que é endereço da casa
cuja fachada está em reforma. Pois então hoje, um domingo, decido conferir se a
obra enfim terminou. Ao dar de cara com a casa, constato que na parede ainda há
espaço para encaixar muitos azulejos, há montinhos de pedra, areia e cimento
num canto e também há um andaime instalado na parte alta da fachada. Ainda bem.<o:p></o:p></span><br />
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span>
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><br /></span>
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><a href="https://www.editorajaguatirica.com.br/livros1/cronica/pre-venda-a-vida-e-um-sorvete-derretido/" target="_blank"><i>Clique aqui para conhecer o livro de crônicas do autor</i></a></span><br />
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Flávio Sansohttp://www.blogger.com/profile/00096646222954593149noreply@blogger.com