Raíssa, um flashmob e Getúlio Vargas


O que vai preencher as linhas desta crônica também poderia ser narrado por Getúlio Vargas. Ambos estamos na praça, frente a frente, eu de um lado da cena e ele do outro. Mas, considerando as restrições comuns à imobilidade das peças de bronze, fica impossível saber as impressões causadas a tão inanimada testemunha e por isso não vai ter jeito de a cena ser conhecida senão por meio de uma única versão daquele entre nós dois que, a despeito de não ser ilustre, ainda não saiu da vida.

A praça está ocupada por muitos jovens, é provável que ninguém ali tenha alcançado os quatorze ou quinze anos. O rádio de dimensões oitentacentistas está em destaque sobre uma mesa. As caixas de som plugadas a ele propagam músicas dançantes ao longo das quais os vocais agudos espocam falsetes vibrantes, tudo muito ao gosto dos que têm no corpo reservatório entupido de energia e disponibilidade emocional. Os curiosos vêm se aproximando e agora é só deixar a cargo de um deles a tarefa investigativa, dito e feito, uma senhora pergunta a uma das integrantes do grupo sobre o que se trata a movimentação. É um flashmob, responde a garota. Adivinhando a falta de entendimento da senhora, ela complementa: É uma coreografia que muitas pessoas fazem no meio da rua.

A mesma garota que esclareceu o conceito de flashmob agora está aflita e, puxando o braço de sua amiga, começa a gritar: Vem, Raíssa, vem. Raíssa, porém, titubeia, não vai, fica parada assistindo à amiga que, depois de soltar-lhe o braço, corre para chegar a tempo de participar da coreografia. Ao que parece, Raíssa está dominada por um ataque de timidez. E é uma pena, porque o gorro, as calças largas, a camiseta cortada ao meio e o tênis confortável certamente foram pensados para favorecer estética e funcionalmente a dança.

A coreografia é feita de movimentos vigorosos, todos os rostos reagem com exatidão às sensações expressas pela música: os semblantes simulam ora tristeza, ora raiva e ora contentamento radiante conforme os trechos da letra variam entre o drama amoroso, a decepção e, enfim, o encontro apaixonado. Braços cruzados na frente do peito, Raíssa deixa transparecer a frustração de ser apenas espectadora. Enquanto observa os outros jovens dançarem, lança olhares rápidos para o próprio corpo, e essa alternação a faz murchar cada vez que seu olhar se volta para si mesma. 

A boa notícia é que, depois de um pequeno intervalo, outra coreografia está para começar, e desta vez Raíssa não dá chances à hesitação, atirando-se rumo ao meio do grupo, onde volta a se juntar à amiga com a qual entoa gritinhos de comemoração, quem só agora as vê assim poderia imaginar que este reencontro se dá depois de muitíssimo tempo. Raíssa se posiciona com ares de concentração absoluta. De repente, desdobra-se em movimentos bruscos para acompanhar a música que começa agitada. Ao longo da coreografia, seus passos de dança não são exatamente iguais aos dos outros. Em especial, Raíssa também não é igual aos outros quando sorri durante os trechos da música que expressam drama, decepção. É que Raíssa sorri o tempo inteiro.  
Ao sentenciar que entraria na História, Getúlio Vargas talvez já soubesse que essa coisa de ser memorável também haveria de incluir a pasmaceira eterna de estar imóvel em praças e coretos, expondo-se ao pouso dos pombos que lhe sujam a cabeça, os ombros. Ao menos hoje, porém, congelado na pose em que uma das mãos está enfiada no bolso e a outra está erguida como se segurando um charuto, teve o privilégio de presenciar a história de uma pequena vitória.

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