Não passaria em branco nem se por hipótese estivesse sem o casaco
cinza-claro de gomos acolchoados e sem as faixas de curativo que, enroladas às
mãos, dão a ele a aparência de pugilista ainda desvestido das luvas. E tampouco
deixaria de ser percebido se por milagre as cicatrizes de queimadura espalhadas
pelo couro cabeludo, extensas áreas impossíveis ao crescimento de cabelo, desaparecessem
subitamente. O fato é que a presença dele se nota principalmente pelos berros propagados
a título de autoelogio.
– Eu sou cabra destemido.
E também é persuasivo, está prestes a fazer uma demonstração
convincente do que afirma, tem noção de que a palavra, mesmo gritada, voa para
longe, é vítima fácil do sequestro do vento, daí todos preferirem a
consistência dos feitos comprovados na prática. Pois então ele atravessa decidido
a fronteira entre o meio-fio e o asfalto, posiciona-se na parte da avenida
destinada à passagem exclusiva dos ônibus, mão na cintura, o braço em formato
de alça de bule, o outro braço se estica e na extremidade a mão de múmia,
espalmada, faz sinal de que dali nada passa.
E nada mesmo vai passar, pelo menos enquanto o ônibus estiver
parado no ponto, há ainda quem dele desça, há ainda quem nele suba, mas é
chegada a hora de partir, o motorista acelera devagar já percebendo o obstáculo
insólito à frente, o que tem a fazer é virar o volante pacientemente para a
esquerda, talvez seja o menor dos aborrecimentos que enfrente durante o tempo
em que estiver batalhando nas trincheiras do trânsito.
O valente se dá por satisfeito por ter feito o ônibus
desviar, volta para a calçada com ar de orgulho, mas não parece o bastante,
recomeça a gritaria, argumenta sobre bravuras e coragens, embrenha-se entre o
aglomerado de gente, vai perguntando se alguém tem dúvida sobre seu destemor. As
pessoas é que agora desviam dele, ninguém quer pagar para ver, ninguém quer
saber o que acontece se ele for contrariado.
Escurece
de repente. Uma nuvem baixa encobre o derredor, é ocasião para distinguir
precavidos, que sem demora provocam o espocar de guarda-chuvas e sombrinhas. E
logo começa a correria. Entre os que se apressam, quase a se perder de vista, vê-se
o homem de casaco cinza-claro, mãos enfaixadas em movimento de impulsão, o
destemido corre afugentado pela chuva.