O posto de rei das selvas precisava
ser atualizado. Uma área descampada passou a servir de palco para os embates.
Defendendo o seu reinado, o leão até então havia vencido todos os animais que
ousaram enfrentá-lo, restando como último adversário um rinoceronte natural das
savanas mais arbóreas ao sul. O leão achou que suas vitórias haviam sido muito
fáceis e por isso queria uma luta final mais desafiadora. A solução foi
transferi-la da área descampada para a paisagem de matagal, lugar com o qual
seu oponente estava mais familiarizado. Mesmo com um pouco mais de dificuldade,
o leão, enfim, venceu. Sua conquista foi menos entediante, e ele foi confirmado
como rei das selvas, ao menos até o dia seguinte quando morreu vítima de um
tipo de carrapato insaciável só encontrado em regiões de matagal. Por justiça,
o carrapato foi então declarado o novo e legítimo rei das selvas.
Essa é uma fábula de arrogância,
prepotência ou simplesmente de ingenuidade quanto a agarrar-se a uma condição
de importância ilusória que se atribui a si mesmo. Há nela algo de Davi e
Golias, algo de Cavalo de Troia e, mais especificamente quanto ao leão, há
muito do homem.
O homem, essa criatura tão habituada
a engaiolar passarinhos, a confinar bois e porcos, a envidraçar peixes, quem
diria, agora está trancafiado porta adentro sem previsão de poder voltar a
espalhar perturbação por aí. Ora, ora, pois então é a vez de os bichos irem à
forra. Mais à vontade, sossegados e imunes, terão oportunidade de observar, do
lado de fora, a aflição da humanidade enclausurada, talvez até se distraiam com
o que poderia ser definido como um jardim zoológico às avessas.
Por essa razão, em pleno ambiente
urbano, surgem tipos de bichos que em condições normais não costumam se expor
ao temerário convívio com o homo sapiens. Da minha janela, já acompanhei
a revoada de três tucanos que por alguns minutos fizeram escala em calhas e
antenas parabólicas. Também já me deparei com um gavião rajado que se demorou
em pose altiva na cumeeira de um telhado. São tempos em que passei a ouvir com
frequência, vinda das árvores do entorno, a algazarra de miquinhos serelepes e
histriônicos. Como se não bastasse, testemunhei a aparição de uma ave belíssima
que até então eu desconhecia. Depois, em consulta ao google com os termos “ave,
cara preta, peito branco, asas roxas”, descobri que se tratava de uma
gralha-do-campo. E ainda quanto a toda essa desenvoltura dos bichos, quero
falar sobre Orfeu.
Dei o nome de Orfeu a um gato que, ao
longo da quarentena, se revelou muito afeito a passeios noturnos, honrando uma
das mais inerentes tradições felinas. Sempre antes de dormir, quando me
aproximava da janela para fechá-la, lá estava ele misturado à escuridão da rua,
confortável em sua solidão, os movimentos camuflados pelo silêncio eram quase
imperceptíveis. Por noites e noites, como se em obediência ao horário de um
remédio, cumpri o ritual de observar a caminhada vagarosa e elegante de Orfeu.
Mas houve a ocasião em que, desastrado, cometi o erro de fechar a janela com
muita força. Orfeu se assustou e se virou abruptamente para a minha direção.
Seus pequenos olhos brilhantes me encararam com desgosto. Antes de retomar a
caminhada, deixou que seu olhar de fuzilamento exprimisse um tipo de bronca tão
contundente que, embora direcionada a mim, serviria para qualquer outro ser da
minha espécie. A partir de então, na hora de fechar a janela, nunca mais voltei
a ver Orfeu. Quase nada é tão constrangedor quanto se perceber indesejado. É o
sinal de uma derrota.
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A vida é um sorvete derretido |